Há quase 30 anos escrevo sobre relações humanas, e mesmo a política fazendo parte disso, nunca foi meu tema preferido, mas anda difícil evitá-la. Dessa vez foi um leitor, que num arroubo de originalidade, me chamou de esquerda caviar.
João (te chamarei de João, para não te expor), esquerda caviar é uma expressão usada para acusar alguém de ser socialista e ao mesmo tempo levar uma vida luxuosa, o que seria uma contradição, uma hipocrisia.
Mas a questão não é comer mortadela ou caviar, ser socialista ou capitalista, de esquerda ou de direita. São ideologias diferentes, mas acredito que seus conceitos podem ser flexíveis. Eu, por exemplo, votei algumas poucas vezes em candidatos conservadores. A maioria dos meus votos foi para candidatos de centro-esquerda. Nunca votei na extrema direita. Isso diz alguma coisa, mas não diz tudo.
As decisões de um presidente afetam toda a população, só que não da mesma forma. Dependendo das ações que ele tomar, posso ter meus textos censurados ou meu salário desvalorizado pela inflação. Mas, a despeito do que ele faça, a probabilidade de eu ter que dormir em uma calçada ou ser asfixiada dentro de um camburão é nula. Ou seja, tem gente que precisa do governo pelas mesmas razões que eu preciso, e muito, muito, muito mais gente que precisa do governo por razões que eu não preciso. É nessas pessoas, João, que temos que pensar primeiro, porque elas não têm privilégios, não escrevem para jornais, não dão entrevistas. Se ninguém se importar com elas, continuaremos tendo políticos governando só para alguns, não para todos.
Não tenho apartamento em Paris, quem me dera, mas se tivesse, isso não impediria de me posicionar por um país menos desigual. Não há uma campanha na rua reivindicando a troca do sistema socioeconômico, o que existe é um clamor, vindo de todas as classes, por mais consciência ambiental, por um estado laico, por uma cobrança de impostos mais justa, por responsabilidade pela saúde da população, por investimento em educação de qualidade, esse tipo de coisa.
Ninguém supõe que seja possível igualar o padrão financeiro de todos, mas é possível que a distância entre quem ganha mais e quem ganha menos não seja tão indecente. O país se desenvolve quando mais gente estuda, porque aí mais gente trabalha e consome, e a economia cresce. Parece simples (não é), mas um governante tem que ter ao menos o propósito de construir algo nesse sentido. Destruir tudo é moleza.
É isso, João. Feio seria se eu me lixasse para a dor dos outros e pensasse apenas no meu umbigo. A esquerda que você combate é imperfeita, óbvio, mas está longe de ser radical, só busca uma visão mais humanitária da sociedade. Quanto ao caviar, provei uma ou duas vezes. Não é essa coisa toda.