A sexta edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Volp para os íntimos, contabilizou 370 mil palavras escritas em português em 2021. Estima-se que pelo menos mil palavras tenham sido acrescentadas em 2022, e já devem ser mais, a essa altura.
Os lexicólogos renomados que elaboram a listagem oficial e válida para todos os países de língua portuguesa não têm descanso, sempre garimpando neologismos, adaptações de vocábulos de outras línguas, gírias, termos técnicos e por aí vai. O Volp está disponível no site da Academia Brasileira de Letras ou no aplicativo oficial.
É uma trabalheira insana que mobiliza um grande número de especialistas coordenados pelo professor Evanildo Bechara, ocupante da cadeira número 33 da ABL. Mas esse corre todo poderia ser evitado se os lexicólogos aceitassem que boa parte do que se quer dizer na língua portuguesa falada no Brasil se resolve com uma só palavra: coisa.
Coisa, com as derivações possíveis – e as impossíveis, também –, é a palavra que vale por um milhão, e se enquadra nas mais distintas classes gramaticais.
Como substantivo comum, nem se discute. Coisa designa tudo o que existe ou possa existir, de natureza corpórea ou incorpórea, em geral, relativo a seres inanimados.
Em geral, mas nem sempre. Basta ver o jeito como as mães irritadas se referem ao filho que não sai da cama: levanta daí, ô, coisa, já passa do meio-dia.
(Pensando bem, um filho que não sai da cama é um ser inanimado).
Sem tergiversar, coisa é o substantivo perfeito para qualquer ocasião. Tira aquela coisa dali. Não esquece de trazer a coisa. O pai está precisando da coisa.
Mais: é substantivo feminino, mas aceita ser flexionado.
Já te disse que aquele coiso está estragado. Compra um coiso igual a esse. É só apertar o coiso que a TV funciona.
Coisa também dá origem a coisar, verbo multiuso que aparece nas mais diversas entradas.
Já coisou a lição de casa? Agora não posso, tô coisando. Tu não presta atenção em nada, coisou errado outra vez!
Em mais um atestado de sua polivalência, coisa se desdobra em adjetivo também.
A carne ficou no ponto, bem coisadinha. Olha que cabelo coisado. Que cachorro coisadão!
Também não existe palavra como coisa para exprimir um sentimento. É a interjeição perfeita e econômica, resolve qualquer assunto. Dependendo da entonação, “coisa!” pode expressar um estado de espírito bom ou ruim. E também o médio, mas aí convém ser acompanhado de um leve dar de ombros para não confundir o interlocutor.
Quando a pessoa fica realmente versada no uso de/do/da coisa, aí ela consegue tirar todo o sumo da palavra. E o bom é que não há quem não entenda.
Eu busquei a coisa, mas ainda estava coisada, então deixei para coisar mais um pouquinho.
Se a coisa coisar do ponto, já viu. Coisa!
Sai daqui, Coiso, não vê que tu tá coisando a coisa inteira?
Fui buscar a coisa, mas a Mary se fez de coisada.
Esconde a coisa que o teu pai vai dar uma coisada no quarto.
Coisa! Não me diz que tu coisou de novo?
Coitada da Renatinha, tá coisadaça. Isso foi de tanto coisar.
O médico disse que essa coisa passa se eu coisar a pomada três vezes por dia.
Coisa é uma palavra tão precisa que serve até para o que não se sabe o que é.
No filme de terror A Coisa, ela é o medo disfarçado de coisa conhecida. Em casa, quando alguém diz “tem uma coisa ali”, todo mundo entende que é hora de correr e gritar. E quando algum feliz mortal tem “a coisa”, é quase impossível definir o que seja, mas é certo que é mais que talento, carisma, encanto. É “a coisa”.
A língua portuguesa tem, oficialmente, cerca de 371 mil palavras. Mas só uma, até prova em contrário, pode ser usada indistintamente por todos os falantes, em qualquer situação, nos ambientes mais cultos e nos mais informais, e para tudo.
O melhor do Brasil é a coisa.