O que a vida quer da gente é coragem, cravou Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas. E é isso também que o Brasil requer. Quando parece que a tristeza vai dar uma folga, vêm à tona os anos e anos de descaso com os yanomamis, primeiros donos desse país, tratados como se não tivessem direito à terra. Logo eles.
Precisaria existir um buraco no lugar do coração para esquecer as imagens das crianças em pele e osso, da desesperança dos adultos. Definição de genocídio: extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso. Destruição de populações ou povos.
Alguém tem dúvida de que existe um genocídio em curso na Amazônia?
Para além das opiniões sobre o assunto, gostaria de compartilhar aqui alguns trechos da entrevista que o jornal O Globo fez com Ana Caroline Marques de Souza, que há oito meses trabalha no programa Médicos pelo Brasil. Ela é a única médica da Unidade Básica de Saúde de Auris, região que fica dentro do território yanomami – em situação de emergência desde 20 de janeiro.
Ela mesma indígena, Ana Caroline responde pelo atendimento dos 30,4 mil habitantes da região, chegando a fazer mais de cem consultas por dia. Para a médica, a explicação da tragédia yanomami tem uma causa tão simples quanto conhecida: o garimpo ilegal que há décadas empurra os indígenas para a fome e a morte.
“(...) Faltam desde medicações simples, como sulfato ferroso, dipirona, paracetamol e soro de reidratação oral, até remédios para casos mais graves, como soros antiofídicos, adrenalina, antibióticos, endovenosa e soro fisiológicos. (...) Tem vezes que eu compro do meu próprio dinheiro e levo. A equipe se ajuda. Conseguimos bastante doação de colegas da saúde. Mas nem sempre há o que fazer. Os casos vão desde desnutrição a insuficiências respiratórias graves. Em um cenário assim, não consigo nem fazer o mínimo para oferecer uma assistência adequada.”
“Hoje em dia, trabalho com uma equipe composta por enfermeiro, entre quatro e cinco técnicos de enfermagem e dois guardas de endemias. De médico, só tem eu mesma. No período em que ficamos no polo (de 15 a 30 dias), trabalhamos quase que o tempo todo. Temos a rotina de atendimento geral das 8h às 12h e das 14h às 18h. Mas se há alguma urgência, precisamos estar disponíveis.”
“Tudo somos nós que fazemos. Temos escala para limpar e cozinhar. Nos dividimos para preparar o café e o almoço dos pacientes e funcionários. Todos os dias, um funcionário tem a função de cozinheiro.”
“(Sobre VS, adolescente de 14 anos de uma comunidade acometida por um surto de malária) Em 26 de dezembro, recebemos um mensageiro relatando que lá havia vários doentes que não conseguiam nem caminhar. Devido à distância, era necessário fazer o resgate de helicóptero, mas não havia nenhum disponível. (...) Só conseguimos realizar o resgate dia 4 de janeiro. (...). Ao examinar VS, a primeira coisa que ele me pediu foi comida. Ele me contou que não se alimentava havia dias.
Seus lábios estavam rachados, sua pele seca e pálida e seu pulso, fraco. Após cuidados iniciais de hidratação, ele apresentou uma melhora discreta. Mas precisou ser transferido para a unidade de terapia intensiva de um hospital em Boa Vista, porque o quadro era muito grave. Ao contrário de muitas outras, no entanto, essa história teve um final feliz. Fiquei sabendo que ele teve alta no dia 10 e está agora na Casa de Apoio ao Indígena.”
O garimpo e outras formas de exploração ilegal, a contaminação da água pelas sobras de minérios, a fome e a falta de políticas públicas transformaram a floresta em purgatório. Sem falar nos inúmeros episódios de violência dos invasores contra as populações indígenas.
Perguntada sobre as medidas tomadas pelo governo para diminuir o sofrimento dos yanomamis, a médica Ana Caroline diz que vê com bons olhos, mas que as estratégias precisam ser pensadas como medidas de longo prazo, e não como ações emergenciais com prazo para acabar.
Precisaria ter um buraco no lugar do coração para não concordar com ela.