Dia 24 de junho era um dia como qualquer outro, quer dizer, era dia de São João, até o ano de 2005. Foi no dia 24 de junho de 2005 que minha mãe morreu. São João perdeu uma posição na tabela, agora só é lembrado, quando o é, depois da morte da mãe.
Já são 17 anos, quase uma maioridade sem ela. É muito tempo, ainda que, nem de longe, o pior dos casos. Perdi minha mãe já adulta, diferente de meu pai, de meus primos, de amigas e amigos, de tantos que conheço. Se grande a gente já fica sem chão sem a mãe por perto, o que dizer de uma criança.
Não era nisso que pensava quando comecei a ler Gabo & Mercedes: Uma Despedida, ansiosa pelo relato do filho Rodrigo sobre os últimos dias de seu pai, Gabriel García Márquez. Morto em 2014 após uma longa doença, recebendo cuidados paliativos em casa e já distante das realidades, as que criou e as da vida, García Márquez se foi deixando para trás Rodrigo e Gonzalo, três netas e dois netos, um séquito de funcionários fiéis, amigos pelo mundo inteiro, milhões de leitores. E Mercedes.
Mercedes, sua companheira por 56 anos, é a personagem mais forte do livro, como sói acontecer (primeira vez que uso essa expressão) com as mães dentro de casa. Gabo era o astro, mas sem Mercedes, talvez, ele continuasse sendo apenas Gabriel.
O autor conta que, em 1965, chegando de férias no México e fulminado por um “cataclismo da alma”, sentou-se diante da máquina de escrever para só levantar no início de 1967. Saiu daqueles dezoito meses com um calhamaço de 590 páginas nas mãos.
Todo mundo conhece a história. Mercedes empacotou os originais de Cem Anos de Solidão e foi com o marido aos correios. Enviar o tijolão inteiro para um editor em Buenos Aires custava 82 pesos. Mercedes contou os trocados e encontrou 53. O jeito foi enviar apenas uma parte do calhamaço. No dia seguinte, ela empenhou as alianças dos dois e eles despacharam o restante dos originais.
Depois disso, era justo que Mercedes tivesse o papel de protagonista que teve na vida e na carreira de Gabo. O filho, Rodrigo, diz que tudo se organizava em volta dela na família. Fumante por mais de quarenta anos, ela acabou seus dias respirando com a ajuda de um equipamento de oxigênio, afastando a máscara para dar umas pitadas clandestinas nas costas dos médicos.
Rodrigo García conta que, tanto quanto o pai, a mãe era temperamental, vaidosa e mandona, o que nem sempre tornava a convivência simples, mas não diminuiu o amor entre eles. “Agradeço por ter conseguido entender isso enquanto ela ainda estava viva, e aceitá-la, de maneira que o que me resta é só afeto e um encantamento com a energia vital que ela emanava. Ela era franca e reservada, crítica e indulgente, corajosa, mas temerosa da desordem. (...) Sem a menor dúvida, sua personalidade complexa contribuiu para a minha fascinação da vida inteira pelas mulheres, em particular as multifacetadas, as enigmáticas, e por aquelas que são chamadas, penso que de maneira injusta, de mulheres difíceis.”
Gabo & Mercedes: Uma Despedida é um livro sobre o fim de duas pessoas fascinantes, uma que terminou doente e alheia a tudo, outra que seguiu lúcida até parar de respirar — mesmo que com a ajuda de aparelhos. Rodrigo García, que é cineasta em Los Angeles, não escreveu um livro memorável como os de seu pai. Mas deixou um pequeno relato difícil de esquecer.
Feito a mãe e o pai da gente.