Quarenta anos depois, com três filhos adultos, sem contar o que não vingou, mais sete netos já criados, o casamento dos dois segue entrando em crise a cada inverno. Tudo porque ela tem os pés gelados e tira as meias durante a noite.
Quantas vezes ele já acordou gritando ao sentir nas pernas o que lhe pareceram duas barras de gelo embaixo das cobertas? Quantas vezes já não pensou que era a morte vindo buscá-lo, embora tendo a absoluta certeza de que a morte não deve ser tão fria quanto os pés dela?
Foram muitas as tentativas de conciliação ao longo das décadas.
Naquela sexta-feira dos anos 1980 em que nevou na cidade, por exemplo, ele achou que o casamento não resistiria e foi dormir na sala, apesar dos protestos dela. Passou frio a noite inteira, mal acomodado com o único cobertor sobressalente da casa, mas pelo menos não acordou com a sensação de um Chicabon encostado na panturrilha. Na segunda lua-de-mel, pediu um quarto com camas separadas no hotel de Gramado para evitar um divórcio em plenas Bodas de Prata. Chegou a comprar uma espécie de tiptop de adulto, de flanela e com pezinhos, para não deixar nenhuma parte do corpo à mercê dos membros inferiores da companheira. Nem assim o choque foi menor.
Tentando remediar as crises, a filha comprou todo o tipo de meias para a mãe. De lã, de algodão, de fio sintético, até de neoprene. Com elástico fino, elástico grosso, elástico que apertava tanto que quase gangrenou as canelas da pobre mulher. Tudo em vão. No sono mais profundo, mesmo que nevasse fora da cama, ela agitava os pés, agoniada, e chutava as meias para longe. Era de se imaginar que o ataque de calor se traduzisse em pés pegando fogo, mas que nada. Tão logo se livrava dos carpins, ela procurava a quentura do corpo dele e colocava os dois pés congelados entre as pernas do marido. No início, a gritaria acordava os filhos e até os vizinhos. Quarenta anos depois, os dois sozinhos em casa, nem os cachorros latiam, acostumados.
Nessa semana, quando o frio veio castigando, inclusive com a ameaça de um ciclone, ele colocou em perspectiva tudo o que os dois viveram. O quanto ele batalhou para ser notado lá no início, tendo que superar um topetudo de voz bonita chamado Milton. O primogênito que chegou no mesmo dia em que ele foi demitido, trazendo tanto alegria quanto preocupação. A vez em que ela quis ir embora com um ex-namorado. Os jogos no Olímpico. O apartamentinho na praia, para onde os dois planejavam mudar assim que a caçula tivesse bebê. O apartamentinho na praia. Como foi que ele não pensou nisso antes?
Ontem mesmo ele partiu para Quintão, para passar o inverno na companhia das gaivotas e de um ou outro amigo que apareça lá para pescar. Ela vai de vez em quando com os filhos, mas não para dormir. Combinaram de só dividir o mesmo leito na primavera, no verão e no outono. Pé gelado embaixo da coberta, nunca mais.
Juraram viver felizes até que o inverno os separe.