E eis que está em curso a luta do século. Bem, uma delas. O século mal vai chegando à maioridade, mas o que não faltou foi luta nesses quase 21 anos. Sangrentas, tristes, injustas, bizarras, fúteis, necessárias, impossíveis, cada dia serve de ringue para a vitória ou a tragédia. Viver é lutar, disse Sêneca. A luta é a essência do homem muito mais do que a razão, li em algum muro filosoficamente pichado. E não é? Tem muita luta por aí que faz duvidar da capacidade de alguns de se equilibrarem em duas patas.
A luta de que trataremos aqui envolve bilhões de dólares e de audições. De um lado, a malemolência de Martinho da Vila. Do outro, a imponência de Adele, a cantora inglesa de 33 anos que tem fãs pelo planeta inteiro. Um encontro desses dois personagens dificilmente se daria na Vila Isabel, escola de samba do coração de Martinho, ou em uma das mansões que, contam os pasquins, Adele mantém em Beverly Hills. Martinho e Adele foram se esbarrar nos compassos de uma música, Mulheres, que ele gravou em 1995. Mais especificamente, em 88 compassos iguais.
Já tive mulheres de todas as cores, de várias idades, de muitos amores. Quem não ouviu esses versos na voz sorridente de Martinho? Com umas até certo tempo fiquei, pra outras apenas um pouco me dei. Quem não arrastou essas sílabas e forçou o sotaque carioca em um fim de noite, nos estertores de um churrasco ou de um karaokê? Um primo ficou para sempre no álbum de recordações da família quando fez de Mulheres sua música preferida aos quatro anos de idade. O pequeno era levado de casa em casa para divertir os parentes e a vizinhança com sua interpretação sentida. Já tive donzela e até meretriz, cantava ele, a plenos pulmõezinhos.
Um milhão de anos depois – licença poética –, o compositor de Mulheres, Toninho Geraes, identificou grande parte de sua melodia em uma canção que Adele lançou em 2015. Million Years Ago (Um Milhão de Anos Atrás) tem uma temática, uma poética e uma estética completamente diferentes das do hit do Martinho. Poderia até ser a trilha sonora da pandemia, de tão triste que é. Um trechinho: Eu sinto como se a vida estivesse passando num piscar/ E tudo que eu posso fazer é assistir e chorar/ Eu sinto falta do ar, sinto falta dos meus amigos/ Eu sinto falta de minha mãe, sinto falta de quando a vida era uma festa a ser curtida/ Mas isso foi há um milhão de anos atrás.
O problema é que se pode cantar a letra de Mulheres em cima de Million Years Ago, e tudo se encaixa direitinho. Em lugar de uma confissão doída como “Às vezes sinto como se fosse só eu/ Que nunca me tornei quem pensei que seria”, a redenção de “Você é o sol da minha vida, a minha vontade/ Você não é mentira, você é verdade”.
Toninho Geraes ficou sabendo da coincidência – vamos chamar assim – no ano passado porque o filho do maestro que orquestrou a gravação de Mulheres ouviu a música de Adele e pensou tratar-se de uma versão autorizada. Não era, e agora a Dona Justa vai decidir quem tem razão nessa peleja. O advogado de Toninho já mandou três notificações para a outra parte que, até o momento, fez a egípcia. Nem para mandar um e-mail com um protocolar “acuso o recebimento”.
Uma curiosidade é que o produtor que trabalhou com Adele no álbum 25, de onde Million Years Ago saiu, é fã declarado da música brasileira e, informação sempre em destaque nos noticiários, sabe até tocar berimbau. Talvez ele tenha pensado que berimbau é gaita, ditado que significa: 1. crer, equivocadamente, que alguma coisa é simples e fácil; 2. enganar-se ao acreditar que uma determinação possa ser cumprida, sem que haja punição.
Picardia versus melancolia. Se todas as lutas fossem assim, a vida seria bem mais leve e divertida.