E aí, amizade, tudo magiclick? Pensei em começar esta missiva – por certo que estamos quase extintos, nós, os que chamamos cartas de “missivas” – com um caríssima, excelentíssima, digníssima, ilustríssima, mas tu, que te conhece tanto quanto eu, poderia achar o tratamento exagerado. “Amizade” nos cai melhor, ainda que, algumas vezes, olhando para a gente em retrospectiva, eu nem sei se seríamos amigas. Sendo bem sincera, não concordo com muita coisa que tu aprontou ao longo dos tempos. Mas deixa para lá, não quero que a mágoa manche esta epístola. Será que, fora da Bíblia, alguém chama carta de “epístola”?
Também te peço desculpas por não conjugar a segunda pessoa corretamente. Cada vez que tento escrever “fizeste” ou “conseguiste”, sinto que estou traindo meu mais de meio século de porto-alegrês. Poderia facilitar tudo se te chamasse por “você”, mas essa formalidade, entre nós duas, seria ainda mais inaceitável do que o meu português capenga. Sei que tu vai me entender.
Pensei em te escrever para contar as novidades desde o último inverno. Bem verdade que não tem novidade alguma, já que eu continuo dentro de casa, como tu em junho do ano passado. A diferença é que tu ainda achava que logo a coisa entraria nos eixos, e fazia planos de trabalho, de viagem, de vida. Já eu aceitei que, tão cedo, ninguém vai sair dessa. Não sem vacina e sem uma política de saúde decente. Invejo a tua esperança de junho passado. Sem ela, sinto que envelheci muito mais do que um ano, nesse longo ano.
O primeiro frio de 2021, adivinha, rengueou a cusca aqui. Saudade dos nossos últimos invernos no Rio de Janeiro. Casaco, só no metrô ou no cinema, para não sofrer uma hipotermia com o ar-condicionado que os cariocas mantêm em temperaturas patagônicas. Nas poucas vezes em que tu saiu de botas – só por vontade de usar botas –, botou o sarampo para fora. Já eu estive em Bagé e não lembro de me encarangar tanto.
Nosso filho diz que a mente humana esquece as friacas passadas, como se uma desmemória quentinha apagasse a sensação desagradável. Daí, quando o inverno volta, sempre parece a primeira vez. Mas sabe o que não dá para apagar? Esse tanto de gente que está morando na rua. Dói andar pelo centro de Porto Alegre e ver que os degraus viraram casa, as marquises mais disputadas do que nunca. São muitos os que perderam tudo nesse ano desgraçado de desemprego, crise e doença. Se não fossem as iniciativas particulares, pessoas e organizações que distribuem comida, cobertas, remédios, a população de rua teria ainda menos. Se tu achava que a situação já estava no limite no ano passado, te surpreenderia com o quanto esse limite ainda está longe. É o que temos, com esses desgovernantes que não dão a mínima para a vida.
Nosso filho diz que a mente humana esquece as friacas passadas, como se uma desmemória quentinha apagasse a sensação desagradável. Daí, quando o inverno volta, sempre parece a primeira vez
Em todo caso, para não dizer que vim aqui só para falar de tristezas, queria te contar que comecei um livro novo. Não posso dizer que vem coisa boa por aí, a exemplo dos colegas que anunciam suas futuras glórias, mas alguma coisa vem. E mesmo que não seja boa, ao menos estou reagindo. Isso tu já falava, desde o ano passado: sem reagir, a gente cai. Seguimos na luta, companheira.
Quando esquentar, te mando uma nova missiva, espero que já vacinada, certamente reclamando do bafo de Porto Alegre.
Essas temos sido nós.