Enquanto 2021 vai se mostrando um não vale a pena ver de novo de coisas que a gente, infelizmente, já viu, o calendário não para e é 8 de março novamente. Um Dia da Mulher sem aquela rosa vermelha meio murcha na saída do supermercado, ou o décimo gancho de pendurar bolsa na mesa recebido de presente na empresa.
Pensando na força que as mulheres em geral têm demonstrado nesse buraco em que o negacionismo de quem devia enfrentar a pandemia nos jogou, compartilho aqui na coluna um post da psicanalista e professora universitária Luciane Slomka. É o relato do encontro dela com uma amiga que não via há algum tempo, a Kamile.
As palavras da Luciane dão conta do que os profissionais da saúde estão passando. E da inconformidade deles com a falta de colaboração da sociedade para diminuir o caos desse momento, o pior desde que tudo começou.
Para as mulheres, nesse dia sem comemoração, minha admiração e felicidade por ser da mesma turma de vocês.
“A Kamile é fisioterapeuta da emergência do Hospital Moinhos de Vento. Foi lá que trabalhei com ela nos meus anos de psicóloga hospitalar, e a Kamile não tinha o mesmo olhar de agora. Hoje a encontrei no supermercado e conversei minutos suficientes para querer abraçá-la e chorar junto. Ela disse que tirou uma foto de si mesma hoje pela manhã, ao sair do plantão, para ver a própria feição exausta.
A Kamile me falou do desespero de pacientes jovens se agarrando na roupa dela, pedindo desesperadamente para que não os deixasse morrer. Adultos jovens internando filhos adolescentes, com piora grave do estado geral. Uma mulher jovem com mais de 80% do pulmão comprometido, pedindo para viver porque precisava ver o aniversário da filha.
Os profissionais estão exaustos, deprimidos, revoltados com uma população que não compreende o que estamos vivendo enquanto sociedade. A Kamile perdeu sete quilos, tem muita dificuldade para dormir, assim como a grande maioria dos colegas.
Olha nos olhos da Kamile e diz para ela que tu tá cansado de ficar em casa. Olha nos olhos dela e diz que foi só uma viagem curta com poucos amigos para um lugar ‘vazio’. Olha nos olhos dela e diz que foi só ‘uma voltinha para espairecer’, olha nos olhos dela, ouve a voz cansada dela, como eu ouvi, e vê se tu ainda não vai conseguir entender a gravidade do que estamos vivendo.
As palavras da Luciane dão conta do que os profissionais da saúde estão passando. E da inconformidade com a falta de colaboração da sociedade para diminuir o caos desse momento
Ela me contou que já está começando a fazer escolhas entre quem vive e quem morre. Não adianta ter convênio, não adianta ter grana, não tem mais lugar, não tem mais equipe! Se tu te acha imune ao risco, ao menos em respeito a esses profissionais, fica em casa e agradece ter oxigênio para respirar.
Me desculpem a postagem dura, mas eu queria que todo mundo pudesse ter visto o olhar da Kamile, ouvido os relatos dela e sentido um pouco do que a vida dela e de todos os meus bravos ex-colegas de HMV, e certamente de todos os outros hospitais dessa cidade, estão passando. Eu pedi a ela autorização para fazer esse post, e ela pediu que eu usasse meu espaço para falar. Porque nem isso mais ela tem energia de fazer.
Fica em casa, usa máscara e cuida dos teus.”