A cineasta Ana Luíza Azevedo passou longos anos desenvolvendo o projeto do filme Aos Olhos de Ernesto – que fala, em sua essência, sobre envelhecer. “É um assunto que me encanta pelos desafios, pelas escolhas difíceis, pelas limitações impostas e pela possibilidade de, mesmo com tudo isso, viver.”
O filme conta a história de Ernesto, um velho uruguaio solitário, fotógrafo que quase não enxerga mais. O que tira dele as imagens, os livros e a correspondência que troca com um ex-amor que permaneceu no Uruguai. “Eu tenho uma relação com a velhice muito positiva”, diz Ana. “Meu pai está com 94 anos, minha mãe com 89, e eles são pessoas que seguem fazendo projetos de vida. Independentemente das tuas limitações, tu precisas ter projetos. É muito triste deixar de ter vontade. E, às vezes, não precisa chegar na velhice para desistir da vida.”
A essas questões, dramaticamente muito ricas, Ana juntou a ideia de um estrangeiro vivendo longe de sua terra. “O psicanalista Contardo Calligaris, italiano, disse que, uma vez estrangeiro, sempre estrangeiro. Mesmo que tu adotes outro país, ele não é o teu. E, se tu voltas para o teu país, também não pertences mais àquele lugar. Então esse é um sentimento que eu quis trabalhar no meu personagem, um uruguaio que está aqui, tão perto, como tantos outros uruguaios e argentinos que vieram para o Brasil em decorrência da diáspora provocada pelas ditaduras militares, e que ficaram. Eu quis trazer isso para o personagem, e também trabalhar a cultura uruguaia, que é tão próxima de nós, tem tanta coisa em comum, e é tão pouco vista no cinema brasileiro.”
O ator que interpreta Ernesto foi, desde sempre, a primeira e única opção de Ana Azevedo. Jorge Bolani, o maior ator uruguaio, já havia encantado a diretora no teatro e em filmes como Whisky. “Mandei o argumento e fomos a Montevidéu, eu e a (produtora) Nora Goulart, conversar com o Bolani. Ele não tem nada a ver com o Ernesto, mas entendeu perfeitamente o que eu queria. Era como se o personagem estivesse ali, na minha frente.”
A admiração pelo escritor uruguaio Mario Benedetti foi outro ponto de contato entre os dois. “Bolani tinha montado no teatro A Trégua, do Benedetti, e quando leu uma referência ao livro no roteiro, imediatamente já gostou.”
Aos Olhos de Ernesto mostra a cumplicidade entre dois abandonados, o senhor de mais de setenta e uma garota de pouco mais de vinte. “Eu sempre pensei na Gabriela Poester, que é uma excelente atriz, para fazer o papel da Bia. O entrosamento entre o Bolani e ela foi perfeito. Eles são extremamente generosos e curiosos. O Bolani tem uma larga estrada de trabalho e de vida, mas em nenhum momento demonstra qualquer pretensão. Ele parece estar sempre aprendendo, jogando com o parceiro, para o parceiro, o que é muito bonito – e nem sempre é comum no trabalho do ator.”
A gente está vivendo a destruição das universidades, da educação, da ciência, do meio ambiente, da cultura. É tão absurdo que se fica sem reação
ANA LUÍZA AZEVEDO
Produzido pela Casa de Cinema, com roteiro de Ana Luíza Azevedo e Jorge Furtado e colaboração de Vicente Moreno e Miguel da Costa Franco, Aos Olhos de Ernesto estava pronto para ser lançado quando veio a pandemia. “Ninguém sabe quanto tempo isso vai durar, e pior, sem uma política sanitária no Brasil.” Sem políticas públicas em geral, como se vê em praticamente todos os setores. “A gente está vivendo a destruição das universidades, da educação, da ciência, do meio ambiente, da cultura. É tão absurdo que se fica sem reação. Há quanto tempo nós estamos nisso e ainda somos surpreendidos a cada dia com o que acontece?”
Ana cita o caso da dentista que vai dirigir o Centro Técnico do Audiovisual, que já foi um importante instrumento para a viabilização do cinema brasileiro. Sem falar na Cinemateca Brasileira, aquela que foi prometida como prêmio de consolação para a ex-secretária Regina Duarte, hoje fechada, sem direção, sem funcionários. “Nós corremos um sério risco da memória do cinema brasileiro, do audiovisual brasileiro, se perder.”
“Dói ver políticas de incentivo que levaram décadas para serem implantadas desaparecendo assim. Destruir é muito rápido. É como passar na frente de uma casa, imaginar quanto tempo ela demorou para estar ali, com toda uma história, com os seus significados, e saber que em um dia é possível botar tudo abaixo. É isso que está acontecendo com a política cultural brasileira. Só que a nossa cultura é muito mais forte que qualquer governo, e vai sobreviver.”
Para assistir a um filme que não termina quando o FIM aparece na tela, é só entrar nas plataformas Now, Vivo Play e Oi Play. Para sorte do público, Aos Olhos de Ernesto entrou em cartaz no streaming – e, desde 18 de julho, também está em exibição em várias salas no Japão. O que, por enquanto, está mais longe que o Japão para nós.
Apague as luzes e boa sessão.