“O prazer vem diretamente de Deus, não é católico, nem cristão, nem nada ligado a isso, é simplesmente divino.”
Pode parecer que o autor da frase é Caetano Veloso, que sempre pensou a favor da liberdade.
Ou, quem sabe, de algum filósofo progressista – para não dizer esquerdista e correr o risco de um cancelamento.
Ou, ainda, um ator desbundado (palavra bem anos 1970), uma atriz feminista ou, simplesmente, um/uma artista. Nos dias que correm, se há atividade enxovalhada, desrespeitada e desconsiderada, é a arte.
Se você escolheu uma das alternativas acima, a resposta está er-ra-da. Quem acaba de dizer que o prazer sexual vem de Deus, e mais, que os cristãos devem aproveitá-lo, é o Papa Francisco.
Caiu o queixo? Pois foi o Santo Homem em pessoa quem falou.
Em um livro de entrevistas que saiu agora mesmo na Itália, o Papa que gosta de futebol – argentino, por supuesto – surpreendeu a turma conservadora nos costumes com uma ideia que passa longe dos conceitos da Inquisição. Alguns bem caros, ainda hoje, para a turma conservadora nos costumes. Além de tirar o prazer sexual da fogueira, o Papa também liberou a boa mesa da culpa. Pena que justo no momento em que ficou mais difícil sustentar uma mesa farta, com a especulação e o preço dos alimentos. Ir ao supermercado virou uma experiência de terror.
Claro que a ala medieval não curtiu as declarações do Papa, assim como não tem gostado de outras atitudes dele
“O prazer de comer serve para manter uma boa saúde, da mesma forma que o prazer sexual serve para embelezar o amor e garantir a continuidade da espécie.” Francisco, que não é o Buarque de Holanda, concluiu: “O prazer de comer e o prazer sexual vêm de Deus”.
Claro que a ala medieval não curtiu as declarações do Papa, assim como não tem gostado de outras atitudes dele. Por exemplo, o fim do segredo pontifício sobre crimes de pedofilia dentro da Igreja. Ou a publicação de um manual para os eclesiásticos com diretrizes sobre o procedimento a seguir “na delicada tarefa de levar adiante corretamente os casos de abuso sexual contra menores que impliquem religiosos quando são acusados”. Essa é uma ferida que a Igreja não pode mais ignorar.
Enquanto isso, no Brasil, autoridades como a ministra Damares e suas ideias carolas e retrógradas ganham cartilhas. O ministro da Educação, um pastor que já defendeu castigos físicos para as crianças, vai a um evento de prevenção ao suicídio pregar que os jovens se matam porque, sem religião e sem propósitos, viram zumbis existenciais. E o próprio presidente, não que surpreenda, não deixa passar a oportunidade de repetir que família é marido, esposa e filhinhos. Fraquejadas são admitidas, mas só eventualmente.
Voltando ao Papa, que é mais interessante. Ele já defendeu, por exemplo, que a comunidade LGBT seja respeitada e acolhida na igreja. Já chamou o capitalismo de “ditadura sutil” e pediu atenção para o aquecimento global. Sobre a pandemia, insiste que pessoas são mais importantes que a economia. É um líder espiritual humano, enfim, mesmo que isso pareça uma contradição em termos. O que não deixa de ser incomum em época de moralistas de fachada.
As novas declarações do Papa estão em um livro que reúne uma série de entrevistas feitas pelo jornalista Carlo Petrini. Na obra, Francisco critica a rejeição à noção de prazer que a Igreja vem difundido ao longo dos séculos, “uma interpretação errada da mensagem cristã” que “causou enormes danos, ainda perceptíveis em alguns casos”. “A Igreja condenou os prazeres desumanos, grosseiros, vulgares, mas, por outro lado, sempre aceitou os prazeres humanos, sóbrios, morais”, na interpretação dele.
O livro, que se chama TerraFutura: Conversas com o Papa Francisco Sobre Ecologia Integral, não tem previsão de lançamento no Brasil. Ecologia integral. O que Francisco deve pensar quando vê a Amazônia e o Pantanal em chamas?
Deus – mas o Deus do Papa, esse que é tolerante e justo – defenda a nossa natureza. Porque o homem, esse está passando a boiada. E com muito prazer.