Muito já se falou sobre a tal cultura do cancelamento, essa espécie de Sibéria dos nossos dias. Isso para quem ainda lembra de quando os dissidentes da ex-União Soviética eram mandados para o esquecimento das terras geladas e desoladas do norte da Ásia, uma legítima cultura do congelamento. Mas é melhor não falar nisso porque, para um lado ou para o outro, podem querer me cancelar. E este é apenas o primeiro parágrafo da coluna.
O cancelamento é o “morreu para mim” de hoje. O antigo “nunca mais olho na cara da fulana”. O arcaico “se estiver caído no meio da rua, passo por cima”, como dizia, a respeito de seus desafetos, um então poderoso colega de trabalho sobre quem a vida se encarregou de passar por cima. O cancelamento é o fim da relação, o até nunca mais, o desterro no mundo digital, em geral sem elegância. Pode vir precedido de xingamentos e do aviso: cancelando em 3, 2, 1.
Pessoalmente, cancelo direto, mas sem grosseria – como deveria ser, na minha humilde opinião. Os mal-educados, os de maus bofes, os que ofendem de graça, os que confundem caixa de comentários com lata de lixo, esses são sumariamente excluídos e bloqueados. No real ou no digital, primeiro vem o respeito. Depois a gente conversa.
Fiquei surpresa com o número de pessoas incomodadas com a minha coluna da semana passada. O assunto: a necessidade de se usar máscara. Às vezes o tema é espinhoso e quem escreve já sabe que vai ser criticado – quando não cancelado. Mas polêmica por causa da máscara? Com um único leitor, depois de um início tenso, foi possível ter um diálogo respeitoso. Sigo defendendo o uso da máscara, ele segue discordando, mas um não cancelou o outro. Já os que partiram para a ignorância, a esses dei adeus. E garanto que não sentirão a minha falta.
Alguém me mandou o print do comentário de um sujeito que ofendia não o meu texto, mas a mim – pessoa física, trabalhadeira, muié
Um causo interessante aconteceu há alguns meses, no outro jornal em que escrevo. Alguém me mandou o print do comentário de um sujeito que ofendia não o meu texto, mas a mim – pessoa física, trabalhadeira, muié. Um agravante eram os erros de português, tão ou mais agressivos que as palavras do homem. Fiquei curiosa e fui procurar o nome dele no Facebook, esse dedo-duro de biografias. Era um senhor cheio de fotos com as netinhas, um vovô explodindo de ternura nas horas vagas do seu ódio. Vi também que trabalhava em uma empresa pública. Ah, é?
Escrevi para a ouvidoria da empresa e anexei o comentário do sujeito. Cheguei a pensar que não acreditariam, uma baixaria daquelas vinda de um vovô amoroso, mas é bem capaz. Poucos dias depois, recebi o telefonema da ouvidora da empresa, uma advogada com quem conversei durante um longo tempo sobre a diferença entre liberdade de expressão e abuso de expressão. Para encurtar a coisa, não era a primeira vez que o vovô manifestava sua grosseria, e sua especial predileção por desancar mulheres. Foi desligado. Cancelado na vida real. Não por mim, por causa dele mesmo.
De qualquer jeito, escrever com responsabilidade, sem menosprezar a inteligência dos leitores, é a tarefa número 1 de qualquer colunista. Sendo também engraçado, surpreendente, original e brilhante, daí você é o Luis Fernando Verissimo. E se, mesmo oferecendo toda a sua sinceridade, você for cancelado, buenas, são os ossos do ofício. Kurt Vonnegut, o grande escritor norte-americano, deu a morta em Um Homem Sem Pátria. “Bill Gates diz: esperem para ver o que o seu computador pode se tornar. Mas é você que deveria se tornar algo, não o desgraçado e estúpido do seu computador”. Mais ou menos isso.
E, se não for, é só cancelar.