O que torna o Bom Fim um bairro tão único em Porto Alegre? A área entre as ruas Sarmento Leite e Ramiro Barcelos não ocupa a zona mais nobre da cidade, nem concentra nossos principais pontos turísticos. A oferta de restaurantes e cafeterias são bons motivos, mas não é uma exclusividade da região. Sua particularidade é imaterial, embora tenha muitos nomes, sabores e formas. O que torna o bairro singular é sua pluralidade.
Conversamos com três pessoas que, de alguma forma, vivem o bairro e a relação curiosa que os moradores têm com a gastronomia local. Suas histórias não partem do mesmo lugar: uma começa na travessia do Oceano Atlântico, depois da Guerra Civil Espanhola, enquanto outra parte da cidade no interior para tentar a vida na Capital. As histórias, no entanto, se cruzam quando pergunto o que o bairro tem que tanto os encanta.
É unânime a resposta:“heterogêneo”, “democrático” e “eclético”. As palavras mudam, mas a essência é a mesma. No Bom Fim, há espaço para todos e todas, a qualquer hora do dia. Diferentes idades, públicos e gostos frequentam os mesmos lugares, embora, às vezes, os mais velhos preferem o horário da tarde, enquanto os mais jovens povoam os bares à noite. É o que me conta a Salete Moura, uma grande admiradora do bairro.
Desde que chegou em Porto Alegre, no início dos anos 2000, se mudou para o coração do Bom Fim, no prédio em cima da Lancheria do Parque. Salete se encantou com a comunidade e a vida no bairro. Sua admiração, em particular, foi pelo Café Cantante. A forma como a cafeteria une gastronomia e cultura, num ambiente em que estranhos passam a ser amigos, a conquistou. O encanto foi tanto que, ao se aposentar como pedagoga, Salete passou a integrar o time do Café como garçonete.
Pela mesma razão, o Gabriel Drumond não teve dúvida sobre onde abriria seu negócio. Na verdade, a única certeza era que seria no Bom Fim. O primeiro passo foi alugar o prédio na esquina da Avenida Vasco da Gama com a Rua Fernandes Vieira. Depois, entendendo as demandas e os sucessos gastronômicos do bairro, nasceu a ideia do Espaço Brasco. Referências como Cronks, Sambô Sushi e Lancheria do Parque não são vistas como concorrentes. Por outro lado, são espaços que se complementam e agregam no cotidiano a vizinhança.
Luiz Ayete não teve a mesma escolha que Gabriel. Quem decidiu sobre o novo endereço do negócio da família foi o pai, confeiteiro vindo da Espanha que, desde que se mudou para Porto Alegre, na década de 1970, soube que o Bom Fim era a única opção possível. A família judia sempre gostou de comer com fartura, mesmo que não tivesse uma ocasião especial além de celebrar a vida. Foi buscando um público com uma mentalidade similar que a Confeitaria Barcelona se instalou no bairro, em 1980.
A Barcelona só existe porque é no Bom Fim.
LUIZ AYETE
Confeiteiro e sócio do lugar
Luiz, Gabriel e Salete não se conhecem. E, sem qualquer contato prévio ou ensaio, me contaram a mesma razão pela qual o Bom Fim é o que é. Os três, com seus diferentes pontos de vista, evidenciaram que o bairro é único por conta de três fatores que se entrelaçam: gastronomia, cultura e socialização.
São unidos de modo que o limite de um e o começo do outro são embaçados. A gastronomia é atrelada à cultura. Se aprecia a arte de preparar e degustar os pratos. A cultura, por sua vez, promove espaços de interação. E, onde há socialização, a comida é um elo que conecta, promove ainda mais encontros.
Enquanto o Gabriel, do Espaço Brasco, diz que o Bom Fim é “uma pequena cidade dentro da Capital”, o Luiz, da Confeitaria Barcelona, conta que lembrou do bairro quando visitou Berlim, uma cidade conhecida pela sua diversidade.
A Carolina do churros e do chocolate quente
Ao chegar na Confeitaria Barcelona, observo o movimento de uma quinta-feira pela manhã. Entra um senhor que a atendente do balcão chama pelo nome. “Quanto tempo, seu Arnaldo!”, exclama ela. Ele responde dizendo que é ela quem não aparece por lá. “Tu sumiu!”, reclama.
É que ela estava de férias nos últimos 30 dias. E o Seu Arnaldo já tornou a passadinha rápida na confeitaria parte de sua rotina. Durante esse tempo todo, deu para sentir falta da funcionária. Assim acontece com o Café Cantante, a poucos metros dali. Salete conta que, por anos, alguns clientes aparecem todas as tardes para tomar um café, pontualmente às 15h. O lugar se tornou uma extensão de suas casas. “Meu pátio”, define um deles.
Gabriel, quando começou a estudar a relação dos moradores com o Bom Fim, percebeu o quanto os espaços gastronômicos se tornam pontos de encontros - planejados ou não. Não à toa que definiu o Espaço Brasco como “a sala de estar do bairro”. Não importa se é confeitaria, café ou mercado: a presença da gastronomia faz parte da rotina de quem mora por lá.
Os restaurantes e lanchonetes se tornaram as salas da vizinhança. A comida vira pretexto para encontrar aquele amigo que fazia horas que não vi. E, por acaso, o vizinho estava passando na calçada e decidiu se juntar à mesa. Do cafezinho no Muka ao carbonara na Vincenzo Spaghetteria, a gastronomia é causa e, ao mesmo tempo, consequência dos encontros pelo bairro.
Enquanto conversava com Luiz, ele apontou para a mesa ao lado. Estavam sentadas uma avó, sua filha e as duas netas. Ele conhece a família desde o tempo em que a matriarca frequentava a confeitaria que, há 42 anos, funciona na Rua Henrique Dias. Citou, também, a Carolina.
– Eu sei que ela vai começar a vir de novo aqui lá pelo dia 15 de maio. Porque é quando começamos a fazer churros e chocolate quente. Ela chega, me olha e eu sei que quer uma porção mais avantajada só para ela – conta com um sorriso no rosto.
Luiz diz que isso se deve à mãe. Dona Sônia conhecia o nome e sobrenome de todos os frequentadores assíduos da Barcelona, a ponto de telefonar quando as visitas deixavam de ter a mesma frequência. O grande desafio dos filhos que hoje tocam o negócio da família é manter a mesma empatia que conquistou os clientes fiéis na época em que a mãe trabalhava por lá. Particularmente para Luiz, que puxou o dom do pai para a confeitaria, mas não herdou da mãe a memória para nomes.
De cliente à garçonete
Em 2018, Salete se aposentou como pedagoga. Sua amiga Jane Pilar, dona do Café Cantante, estava precisando de uma nova atendente e o primeiro nome que surgiu à mente foi Salete. Pergunto por que e ela responde que, mesmo a amiga não tendo nenhuma experiência profissional com cafés, tem o talento para lidar com pessoas.
Salete não escapou do curso de barista, mas a essência para trabalhar no café ela já tinha. Conhecia bem o cardápio da casa, afinal, já havia provado boa parte dele. E os clientes eram familiares, alguns até se tornaram amigos. De tanto viver no Cantante, admirar o espaço e a sua conexão com a arte local, Salete se sentia dona.
Enquanto eu tomava um café com ela e Jane, senti na pele a atmosfera do lugar. Alguém passa na rua e acena para outro que está tomando uma cerveja lá dentro. Até mesmo uma mulher no carro para e manda beijo à amiga que estava na mesa.
No cardápio, a frase que resume bem a relação dos moradores do Bom Fim com a gastronomia do bairro: “Aqui não tem desconhecidos. Só amigos que ainda não se encontraram”.