— Sou um artista. Dizem que sou um ator. Eu não me considero um ator. Eu me considero um artista — define-se Chadwick Boseman na cena que abre o documentário Chadwick Boseman: Portrait of an Artist (Chadwick Boseman: Para Sempre, na tradução ao português), em cartaz até segunda-feira (17) na Netflix.
Com direção de Awol Erizku, a produção resgata a genialidade de Boseman mergulhando nos bastidores de sua atuação a partir de relatos de diretores, produtores e companheiros de cena do artista, que morreu em agosto de 2020 vítima de um câncer de cólon. Viola Davis, Spike Lee, Denzel Washington, Danai Gurira, Phylicia Rashad, Glynn Turman, George C. Wolfe e Tate Taylor são alguns dos nomes que compartilham com o público detalhes da experiência de trabalhar com o ator, ao longo dos 21 minutos do documentário.
Eternizado como o super-herói Pantera Negra, Chadwick já interpretou personalidades como o astro James Brown (Get On Up), o ícone do beisebol Jackie Robinson (42 - A História de uma Lenda) e Thurgood Marshall (Marshall, Igualdade e Justiça), primeiro juiz negro a integrar a Suprema Corte dos Estados Unidos. O último personagem para o qual emprestou seu talento foi o trompetista Levee, de A Voz Suprema do Blues, papel que lhe rendeu a indicação para a disputa de Melhor Ator no Oscar 2021.
— Chadwick era um ator coadjuvante no corpo de um protagonista — decretou Viola Davis, que contracenou com Boseman no longa interpretando a cantora Ma Rainey, considerada a mãe do blues.
"Bíblia"
Descrito em diversos depoimentos como um "louco" pela perfeição, Chadwick Boseman tinha o hábito de escrever comentários em sua cópia pessoal do roteiro das produções, imaginando o que seus personagens estariam pensando e sentindo a cada cena e sinalizando para si mesmo como poderia externar esses sentimentos por meio da atuação. No documentário, os convidados tiveram acesso ao livro de cena usado por ele em A Voz Suprema do Blues — descrito por Viola Davis como a Bíblia de todo ator, aquilo que de mais íntimo ele pode ter em seu trabalho —, e se emocionaram ao ler as anotações feitas pelo colega.
No trecho que descreve a cena em que Levee é acusado injustamente de ter atrapalhado a gravação da música de Ma Rainey, Chadwick escreveu em seu roteiro, como se fosse o próprio trompetista quem falasse: "Eu sabia que eles iriam me culpar. (...) Sempre há uma conspiração contra mim. Ma armou isso para mim porque sou uma ameaça para ela. Ela conhece o futuro quando o ouve".
— Sabe o que isso me diz? Que ele sente que as pessoas querem pegá-lo, e isso faz muito sentido com Levee. É o combustível dele, que as pessoas, o mundo, tudo esteja contra ele — comentou Viola ao ler a anotação, exaltando a entrega de Boseman para o personagem, por vezes se fundindo com ele.
— Não sei se ele dominava o texto ou se o texto o dominava, mas ele ia em frente, e tudo ficava nu e cru e doloroso, que é como tudo deveria ser. (...) Havia uma pureza. Uma pureza de ator e personagem se tornando um só — destacou George C. Wolfe, diretor do filme.
Glynn Turman, que interpretou o pianista Toledo no longa, surpreendeu-se ao encontrar um acréscimo de Boseman ao roteiro. Em uma das cenas em que seus personagens discutem, Levee interrompe a fala de Toledo ao tocar uma nota no trompete. A ação não estava prevista. O toque do trompete foi acrescentado à cena por um Boseman que se confundia com o próprio Levee apenas "para irritar" Toledo, como escreveu ele em sua "Bíblia".
— A relação entre Toledo e Levee é a de que o jovem sempre tira o mais velho do sério. É divertido olhar e ver que ele escreveu “para irritar”. Sabe, essa era a motivação dele (risos). E ele tirava o Toledo muito do sério. Isso é demais! — comentou Glynn Turman.
Entrega
Minucioso na construção de todos os seus papéis, como contam os colegas, Chadwick aprendeu rigorosamente a tocar trompete para viver Levee em A Voz Suprema do Blues, estudou para conseguir replicar exatamente o modo como Jackie Robinson deslizava ao jogar beisebol e teve aulas de dança para interpretar James Brown. Segundo o diretor Tate Taylor, que trabalhou com Chadwick em Get On Up, sua entrega era tanta que, a todo o momento, o ator ensaiava os passos do astro do soul, em busca de alcançar a perfeição.
— Quando saíamos para jantar e esperávamos por uma mesa, ele, sem perceber, começava a dançar. Ele sempre fazia os passos de James Brown porque queria que ficassem perfeitos. As pessoas ficavam olhando na sala de espera e ele nem percebia. Conversava comigo enquanto fazia os passos, mexendo os pés. Ele nunca parava — revelou.
A atriz, diretora e roteirista Phylicia Rashad relembrou a época em que Chadwick Boseman — Chad, como o chama — foi seu aluno na universidade de Howard. Descrito por sua mentora Rashad como um garoto gentil, de "olhos grandes e arregalados, querendo absorver tudo, querendo aprender tudo", a capacidade de entrega, sua marca registrada, data de muito antes de seu rosto tornar-se conhecido no mundo todo.
— Ele estudava direção, e um diretor precisa saber de tudo. Ele já gostava de saber de tudo. Então, por que não saber atuar também? E, como se provou... Ei! Ele não atuava tão mal, né? (risos). Ele era excelente — revelou Phylicia Rashad.
Para Viola Davis, esta ânsia pela perfeição é a característica que fez de Chadwick Boseman um artista único, eterno na história da dramaturgia mundial. Indicada ao Oscar de Melhor Atriz por seu trabalho como Ma Rainey em A Voz Suprema do Blues e considerada uma das maiores atrizes da atualidade, Viola confessou que Boseman era o tipo de colega de cena que lhe assusta, "porque você tinha que agir à altura na presença dele":
— De vez em quando, tem alguém que aparece só uma vez na vida. O restante de nós luta quase a vida toda pensando que não ouviu aquela voz interior nem uma única vez. E foi tudo o que ele fez.
CHADWICK BOSEMAN: PORTRAIT OF AN ARTIST
Documentário, 21 minutos.
Direção de Awol Erizku.
Disponível na Netflix até 17 de maio.