Lá se vão 12 mil anos desde que uma espécie de caçadores-coletores decidiu abandonar velhos hábitos e trocar a vida nômade por uma existência mais tranquila como agricultores. É curioso que, milênios depois, a tranquilidade para muitos humanos seja justamente sintonizar a televisão em um reality show que emula a existência que tais ancestrais preferiram deixar para trás.
Largados e Pelados, produzido desde 2013 pelo Discovery Channel, parte de uma premissa simples: duas pessoas, sem roupas ou equipamentos, precisam sobreviver por 21 dias nos locais mais inóspitos da natureza. Apesar de cada participante poder levar um item de sua escolha (faca, bússola, vara, etc.), a ideia é que eles encontrem no próprio ambiente recursos para vencer o desafio.
E o desafio é simplesmente aguentar até o fim. Diferente de outros realities em que há provas ou competições, a ideia deste programa é apenas persistir no mundo natural. Eles vão conseguir comida e água? Aguentar as intempéries do clima? Escapar dos mosquitos e animais pestilentos à espreita? E aprender a aturar um ao outro?
Acontece que a fascinação por essa existência primitiva é mais do que o suficiente para fazer um show de sucesso. Um dos maiores fenômenos da televisão nos últimos anos, o programa é o líder de audiência no Discovery. Exemplo do sucesso absoluto foi visto em março de 2020: em plena pandemia, um episódio inédito de Largados e Pelados no horário nobre colocou a emissora como a mais assistida de toda a televisão por assinatura do Brasil, à frente de notícias ou séries, segundo dados da Kantar Ibope Media (via Uol).
E não é só por aqui que faz sucesso. O título soma três indicações ao Emmy (duas vezes por melhor reality show não estruturado e uma por melhor edição), além de reconhecimentos do Critics' Choice Television Awards e do American Cinema Editors. O crítico Brian Moylan chegou a declarar em um artigo no The Guardian, de 2015, que Largados e Pelados era o melhor reality show na televisão. Kayla Cobb, do Decider, teve a mesma impressão em 2020.
"O programa segue o modelo ultrajante de outros reality shows", escreve Moylan, "mas o aplica para celebrar a força e a fortaleza humanas, em vez de explorar a fragilidade e o narcisismo daqueles que só querem ser notados". O mais impressionante e disruptivo para ele é que não há nenhum grande prêmio em jogo. Nada de R$ 1 milhão, barra de ouro ou um grande contrato ao final: os vencedores de Largados e Pelados só recebem a satisfação de ter sobrevivido à natureza.
E, enquanto esses homens e mulheres batalham contra as forças da natureza apenas para provar seu valor, há algo de essencialmente humano em rir de suas trapalhadas, reflete Kayla: "Não há dúvida de que esses sobreviventes duram mais do que 99% do público do show duraria em sua situação. E esse é o apelo, julgar impiedosamente pessoas incrivelmente talentosas enquanto elas fazem algo incrível".
Alerta
Mas, tal como a natureza, Largados e Pelados pode ser glorioso e não necessariamente inofensivo. Os professores Leandro Rodrigues Lage (UFPA) e Paulo Roberto Gibaldi Vaz (UFRJ) alertam no artigo Moralidade Sobrevivente em "Largados e Pelados" que o programa pode ajudar a disseminar uma mensagem perigosa.
"Esse tipo de investimento ostensivo na dor dos participantes nos autoriza a inferir que esses reality shows de sobrevivência são, em sua maioria, responsáveis não apenas pela espetacularização do sofrimento, mas principalmente pela naturalização do infortúnio como espetáculo", escrevem eles. Mais do que isso, fora das linhas de um reality show, seria injusto classificar como perdedores aqueles que não conseguem sobreviver à dor.
Assim, da mesma forma que a produção do programa tem claros os limites do que é entretenimento – participantes com qualquer risco sério à saúde recebem atendimento médico e são transferidos imediatamente para hospitais, por exemplo –, em casa é preciso lembrar que também há limites sobre o quanto um reality show de fato reflete qualquer porção da realidade.
As inscrições para a versão brasileira de Largados e Pelados estão abertas até 28 de fevereiro, gratuitamente pelo site do Discovery. É preciso ter mais de 18 anos e experiência prévia em sobrevivência em lugares hostis para se candidatar.