Twin Peaks estreou nos Estados Unidos em 8 de abril de 1990 e deu um nó na cabeça dos telespectadores. Como diria o saudoso Chacrinha, a série entrava no ar mais para confundir do que para explicar. E explicação era tudo que o público, hipnotizado a cada capítulo, mais perseguia segundo as pistas para o grande mistério: quem matou Laura Palmer?
O caminho para a resposta, porém, não foi uma jornada linear, com uma que outra reviravolta típica das boas tramas policiais. O clima de suspense, sonho, pesadelo e humor nonsense fez de Twin Peaks um marco da cultura pop. A série, exibida em duas temporadas até junho de 1991, tornou-se embrião da fase de ouro que a dramaturgia televisiva viveria nas décadas seguintes. Criou uma legião de fãs tão fiéis que se tornaram impermeáveis às derrapadas na trama impostas a percalços na produção, que tinha como cabeças criativas um cineasta cultuado, David Lynch, e um produtor visionário, Mark Frost. Em 1992, chegou aos cinemas o longa-metragem Os Últimos Dias de Laura Palmer, narrando eventos anteriores aos vistos na série. E, para júbilo dos devotos, Lynch apresentou em 2017 uma desconcertante terceira temporada de Twin Peaks, disponível na Netflix.
A sinopse: em uma cidadezinha do noroeste americano parada no tempo, próxima da fronteira com o Canadá, a jovem Laura Palmer (Sheryl Lee) aparece morta à beira de um lago, enrolada em um saco plástico, brutalmente espancada e violentada. Chega ao lugarejo o agente do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan), que segue os passos de um serial killer responsável por crimes com as mesmas características. Cooper é orientado por uma lógica absurda: segue tanto a intuição e as evidências quanto dicas que lhe chegam como charadas em seus sonhos. A espetacular trilha sonora original composta por Angelo Badalamenti sublinhava o cenário ora onírico, ora fantasmagórico.
Exemplo de ousadia narrativa e formal, Twin Peaks esgarçou limites criativos a níveis até então raramente vistos na TV americana. Lynch já era um cineasta consagrado por filmes "esquisitos" como O Homem Elefante e Veludo Azul quando aceitou o convite de seu amigo Frost para criarem um projeto para a rede ABC, que amargava a os piores índices de audiência entre as três grandes redes de TV dos EUA. Os executivos da emissora avaliaram que não tinham nada a perder com o risco. E acertaram o alvo.
Com liberdade pouco comum na TV aberta, Lynch e Frost mostraram que a trama policial calcada na velha premissa do "quem matou?" era apenas a ponta do iceberg. Já no episódio piloto, Twin Peaks mergulhava em um enredo intrincado misturando suspense, melodrama, humor negro e terror sobrenatural. Ninguém na cidadezinha era quem parecia ser. Insuspeitos cidadãos de bem moviam-se na sombras entre perversões sexuais, relações incestuosas, adultérios, prostituição, tráfico de drogas e falcatruas financeiras. A ferver junto no caldeirão, os autores adicionaram elementos fantásticos, como possessão demoníaca e personagens bizarros transitando entre universos paralelos.
O impacto foi tremendo. A audiência da ABC chegou a 28 pontos, índice altíssimo para os padrões americanos. A série se tornou assunto onipresente na imprensa, em programas de TV, nas mesas de bar. Espertamente, Lynch e Frost criaram personagens e situações tão complexas e fascinantes que exigiria tempo para desenrolar o fio da meada até a solução do mistério. A primeira temporada teve, além do piloto, mais sete episódios. Foi garantida uma segunda leva, com outros 22 capítulos.
A passagem de Twin Peaks pelo Brasil foi curiosa. Estreou na Globo em abril de 1991, após o Fantástico. A emissora, no entanto, mutilou o seriado com vários cortes e criou seu próprio final, o que descaracterizou totalmente a obra. O que já era confuso ficou ainda mais sem pé nem cabeça. Anos depois, a série pôde ser conferida na íntegra em emissoras como a TV Guaíba (no Rio Grande do Sul) e nos canais pagos.
Twin Peaks também foi responsável pelo maior spoiler da história da TV brasileira, quando uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo, em razão do final da atração nos EUA, revelou o assassino sem avisar seus leitores, que ainda especulavam por aqui quem tinha matado Laura Palmer.
A terceira temporada de Twin Peaks, exibida em 2017, retomou o fio da meada da trama 25 anos depois. O reencontro foi marcado na série original, quando, no enigmático quarto vermelho que interliga realidade e delírio, a falecida Laura Palmer sussurra ao ouvido de Dale Cooper: "Verei você em 25 anos", enquanto o anão de fala esquisita dança lançando ao investigador um de suas charadas: "Seu chiclete favorito voltará à moda em grande estilo".
Curiosidades
– Por obrigação contratual, David Lynch e Mark Frost tiveram de dar um desfecho ao mistério "Quem matou Laura Palmer?" no episódio piloto destinado ao mercado europeu. Seria a solução para exibir a produção de forma independente caso a série não emplacasse. Essa versão foi lançada em VHS no Brasil e está entre os extras das edições espacial em DVD e da caixa com a versão com 10 discos Blu-ray, que conta também com a versão masterizada do filme Os Últimos Dias de Laura Palmer e muitos extras inéditos.
– Lynch delegou a um time de diretores e roteiristas o desenrolar da série. Um programa de computador com as diretrizes básicas do enredo e das características dos personagens servia de guia para preservar a unidade da trama.
– Lynch não queria solucionar o assassinato de Laura Palmer. Mas a pressão dos executivos da ABC foi de tal ordem que o assassino foi revelado na metade dos 30 episódios.
– Com a revelação, a série perdeu o rumo e abriu-se a experimentações e a novos arcos dramáticos, que deixaram o elenco insatisfeito. A audiência despencou. Lynch afastou-se da produção para tocar seu longa Coração Selvagem (1990), Palma de Ouro em Cannes, mas voltou em tempo de recolocar Twin Peaks nos trilhos e apresentar um desfecho digno e impactante.
– Com a baixa audiência, a ABC passou a mudar os dias de exibição semanal da série, de quinta foi para o sábado e, depois, para segunda-feira.
– O ator Kyle MacLachlan não queria participar do filme Os Últimos Dias de Laura Palmer. Mudou de ideia em meio à produção, e o agente Cooper acabou incorporado à trama.
– Lara Flynn Boyle não aceitou o convite para viver novamente a personagem Donna, no filme interpretada por Moira Kelly.
– Desde 1993, é realizado no Estado de Washington, na região que serviu de locação para a série, o Twin Peaks Festival, evento que conta com visita guiada aos cenários principais e que tem como ponto alto o encontro entre fãs e atores.
– A terceira temporada de Twin Peaks teve seus dois primeiros episódios exibidos no Festival de Cannes de 2017, em que Lynch recebeu calorosa recepção. O entusiamo da crítica foi de tal ordem que a série foi colocada em prestigiadas listas de melhores filmes do ano. Mas o grande feito foi a eleição, pela referencial publicação francesa Cahiers du Cinéma, como o filme da década.
— Entre os muitos eventos programados para celebrar os 30 anos de Twin Peaks pelo mundo, o ator Kyle MacLachlan convida os fãs para assistirem a episódios comentados por ele em suas redes sociais.