Marco da televisão, série que "mudou tudo", servindo de referência para a chamada era de ouro da TV neste século 21, Twin Peaks foi exibida originalmente em 1990 e 1991. A volta, para uma terceira temporada (que terá os dois últimos episódios liberados na Netflix na segunda-feira, dia 4), foi festejada pelos saudosos de seus personagens clássicos, mas dividiu a audiência. Entre quem amou a ousadia surrealista de David Lynch e Mark Frost e quem odiou seu apelo ao nonsense, fica a pergunta: qual será sua influência daqui para a frente?
Por Leonardo Bomfim
Crítico de cinema, programador da Cinemateca Capitólio
Se eu disser que Got a light? é a frase do ano, deixo claro já no primeiro parágrafo uma excitação absoluta com o que David Lynch está fazendo com o cinema por meio do novo Twin Peaks. Como esse tipo de mistério não tem charme e não costuma fazer diferença, revelo logo a exclamação. Testemunhamos in loco, semanalmente, no camarote muitas vezes choco da Netflix, uma abertura radical da Caixa de Pandora da invenção cinematográfica. Já estamos perto do fim da temporada e a boa angústia só aumenta: o que fazer com todos os males que agora estão soltos? Ainda não dá para dimensionar completamente o tamanho do monstro, mas já arrisco uma previsão. Seu efeito no cinema só poderá ser nulo ou devastador.
Espécie de pseudônimo secreto da série, got a light? é o mantra repetido pelos Woodsmen, seres bizarros de outro tempo (e espaço?) que saem aterrorizando uma cidadezinha no já clássico oitavo episódio – aquele da explosão da bomba nuclear que consegue reunir abstração, surrealismo e horror e, ao mesmo tempo, indicar uma série de possibilidades para a origem de tudo o que atormenta e fascina na coleção de capítulos escrita por Lynch juntamente com Mark Frost. A tradução deveria encontrar o paralelo de light em "fogo" – eles estão atrás de um isqueiro – mas gosto do título ("Tem uma luz?") que surgiu em um primeiro momento na versão brasileira, já que o protagonismo da luz (e de sua irmã jovem e atrevida, a eletricidade) é uma obsessão sem par em todas as dimensões deste novo Twin Peaks.
A insistência dos Woodsmen remete imediatamente ao dilema do cineasta protagonista de Passion (1982), a obra-prima de Jean-Luc Godard. Nela, em meio a uma caótica filmagem, o produtor vive incomodando o artista atrás daquilo que dá lucro: a história. Ele quer saber onde ela está, sobre o que é o filme etc. O paralelo não é um capricho: Lynch e Godard adoram associar os donos do dinheiro no cinema à máfia. E o diretor, um polonês dividido entre a crise de seu país – estamos em 1982 – e a tentativa de reprodução de quadros emblemáticos (o paralelo não é capricho, de novo: a transcriação pictórica no cinema também aproxima o pescador de peixes grandes e o trovador da Nouvelle Vague), está agoniado com aquilo que realmente importa e não aparece – a luz. Sem ela, não há filme.
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A busca teimosa do personagem de Godard encontra um eco na iconoclastia incontornável de Lynch em 2017. Após a euforia inicial, motivada especialmente pelo lugar cativo das duas aventuras iniciais da série no claustro da cultura pop, percebe-se um mal-estar: cadê a história, o desenvolvimento de personagens, por que a trama não avança, por que a nostalgia, musa maior do nosso tempo, é tratada como um clichê ou como uma fantasmagoria? Onde está tudo aquilo que foi saudado pelos experts durante as últimas décadas como a prova de que as séries são muito melhores do que os filmes atuais? Imagino a réplica de Lynch, tranquilo em seu escritório, entre a imagem de uma explosão atômica e um retrato de Kafka, a quem, diante de milagres de cinema, ainda sonha com as migalhas do storytelling: Got a light?.
O elogio ao artifício, incluindo aí todo o tipo de manipulação de imagem e som, não esconde uma profunda inspiração luminosa. Mais do que qualquer outra obra realizada no mainstream norte-americano (e possivelmente também fora dele), o novo Twin Peaks é a grande evidência, hoje, de que a arte cinematográfica é realmente endiabrada quando a semente lumièriana (nos dois sentidos, da luz e dos irmãos inventores) é honrada, ou seja, quando a ficção existe através do olhar do cineasta, e não o contrário. Pode parecer um atentado terrorista dentro do pálido império do roteiro, mas é incrível acompanhar uma revolução realmente tomar forma na televisão pelo modo incomparável como Lynch conduz as cenas de sua telenovela errante.
O tempo é quase sempre esticado ao limite do desconforto, as respostas não aparecem, um vácuo toma conta dos acontecimentos e revela, mais do que uma questão de incomunicabilidade, situações de puro curto-circuito. A linguagem falha, a compreensão também, mas quase nada soa estranho aos personagens. O mesmo não se pode dizer do espectador. Em grandes filmes como Veludo Azul (1986), A Estrada Perdida (1997) e Cidade dos Sonhos (2001), o assombro vinha de um deslocamento daquilo que era reconhecível, de uma espécie de perversão surrealista de uma série de códigos já compreendidos da cultura pop e do próprio cinema. Havia uma fluidez invejável na loucura, mesmo nos momentos de bad trip. Desta vez, a abordagem de Lynch é outra, muito mais incômoda, descontínua, próxima da sensação de um absurdo beckettiano. A impressão é a de que cada cena tem a missão de revelar o vazio dela própria. Caímos no abismo com Dale Cooper.
Aproxima-se à dramaturgia singular a desconexão radical entre os blocos de ação de uma história seriada que acumula dezenas de personagens, lugares e acontecimentos.A desorientação é inevitável, e a suspeita da abstração, a ilusão de que não há história alguma, nasce do susto diante do contrário: há, na verdade, um excesso de ficções que raramente se misturam ou se conectam, mas que jamais escapam de um conjunto. Recordo o que o crítico Ruy Gardnier escreveu sobre Mal dos Trópicos (2004), o grande filme deste século, dirigido pelo tailandês Apichatpong Weerasethakul, traçando um paralelo com a ruptura harmônica no jazz: "Cinema modal porque, uma vez estabelecido o princípio narrativo que estrutura o sentido, cabe tudo na trama: um número musical de cabaré, uma sessão de ginástica aeróbica ao ar livre, uma visita a um santuário mágico situado numa caverna". É assim que Lynch passeia, numa polifonia harmoniosa de gêneros, entre o humor nonsense, o terror explícito ou o romance transbordante (o que é a cena de Ed Hurley e Norma Jennings ao som de Otis Redding!). Ainda faltam dois episódios, que serão liberados nesta segunda-feira, mas já cai a pergunta: com este Twin Peaks, o cinema americano finalmente atingiu o fôlego experimental de sua literatura moderna mais radical – a obra de Faulkner, por exemplo?
Há um inevitável comentário metalinguístico no fato de o personagem interpretado pelo próprio Lynch, o agente Gordon Cole, tomar as rédeas da investigação. Ele age como um verdadeiro maestro em cena, enquanto o antigo herói do FBI, Dale Cooper, bifurcado em duas personas peculiares, vacila entre cassinos e chacinas. Já citei a imagem que estabelece o autorretrato ideal da série: o relaxamento completo ao lado da bomba e de Kafka. Enquanto isso, a metáfora do espectador dentro da cena (o casal na Caixa de Vidro, o blogueiro conspirador) invariavelmente ganha um desfecho violento. O criador tranquilo, o espectador destruído. As nossas cabeças cortadas podem ser uma espécie de alerta, um modo de usar. Ou uma forma de reaprender a ver. Got a light?
TWIN PEAKS
Série em 18 episódios que retoma os personagens do clássico da TV criado pelo cineasta David Lynch e pelo produtor Mark Frost e exibido originalmente em 1990 e 1991. O "novo Twin Peaks" estreou em maio na Netflix e vem tendo os episódios liberados semanalmente. Os dois últimos estarão disponíveis a partir das 4h da manhã de segunda-feira, horário de Brasília. Os 16 anteriores estão na grade da gigante do streaming.