A cena é simples: a delegada Lúcia (Liane Venturella) está parada no hall de sua casa, enquanto contém as lágrimas ao se despedir da filha e do marido. Os dois irão viajar, enquanto a mulher lida com um importante julgamento. A carga emocional da cena dá o tom do que o público verá em O Complexo, minissérie em seis episódios que está sendo gravada em Porto Alegre entre maio e junho. A realização é da Verte Filmes, produtora gaúcha que assina as séries Alce & Alice e Necrópolis (ambas disponíveis na Netflix), com produção executiva da Remo Assessoria e coprodução da Casa de Cinema.
A história é toda centrada em Raul, vivido pelo ator baiano Amaurih Oliveira (da novela A Regra do Jogo, da Globo), um policial negro que se infiltra em uma comunidade periférica de Porto Alegre para coletar informações de uma organização criminosa. Nesta missão, ele acaba adotando o nome do pai e, por conta de algumas ações, será levado a júri para responder por atos cometidos no “Complexo”.
— É um verdadeiro dois em um, porque ele se infiltra e esconde a própria noção de verdade dele. Por isso, ele se confunde em alguns momentos. Muitas vezes, estamos presos em tantas camadas dentro de nós mesmos que precisamos de ajuda para nos encontrar — explica Oliveira, que veio do Rio especialmente para gravar o seriado.
Durante sua investigação, Raul irá se envolver com Cléo, uma líder comunitária, interpretada pela gaúcha Kaya Rodrigues (Alce & Alice). A atriz considera sua personagem a chave para “humanizar” o protagonista, já que Cléo é muito idealista, consciente e preocupada com a igualdade social.
— Ele é uma verdadeira represa de sentimentos, que não dá brechas. A gente vive em uma sociedade com essa herança cultural de que homem não fala sobre sentimentos, que não deve se expor, e questionamos isso na história — acredita Kaya.
Série quer propor um debate amplo
No entanto, O Complexo vai além do debate sobre a questão da figura masculina. Os temas centrais são sobre representatividade, noção de justiça – do que é certo e errado – e, sobretudo, o racismo permeado no cotidiano.
— Estamos vivendo um momento polarizado no Brasil, em que se relativiza o bem e o mal. Inevitavelmente, a série reflete sobre as instituições, a nossa estrutura como sociedade. Com isso, propomos mais perguntas aos espectadores do que oferecemos respostas — antecipa Gabriel Faccini, que divide a direção com Tiago Rezende.
Tomás Fleck, um dos criadores da série, adianta que o andamento dos episódios causa mudanças sobre a concepção dos personagens:
— Em algumas proposições, não existe o certo, e por isso teremos muita identificação direta com o público. As pessoas vão se perguntar: “Será que fui justo com o personagem antes ou não?” — exemplifica.
Como o conceito do que é justo ou não varia de pessoa para pessoa, Kaya e Amaurih acreditam que a série consegue tocar exatamente nesta reflexão.
— É uma série necessária para esse momento que o Brasil vive. É sobre até onde podemos julgar o outro ou não— frisa Kaya.
para mostrar a periferia do Sul
Uma das preocupações da série é a representatividade de etnias no sul. Kaya, além de atuar na série, foi responsável pela pesquisa e pela produção do elenco. Em parceria com Sofia Ferreira, fez um levantamento de atores negros que poderiam viver os protagonistas de O Complexo e chegou aos nomes de Amaurih Oliveira e da atriz portuguesa Isabél Zuaa, protagonista do longa As Boas Maneiras, que viverá a advogada de Raul.
Kaya Rodrigues reitera que as outras regiões do país não têm muita noção da existência da periferia na Região Sul. Em viagem recente a Belo Horizonte, para apresentar uma peça, ela foi surpreendida por duas espectadoras:
— No final, elas falaram que foram assistir porque não sabiam que existia afrodescendentes no Rio Grande do Sul. E eu pensei: “Temos que reverenciar isso mais lá, temos muitas histórias invisíveis” — diz.
Por isso, boa parte das gravações da produção são realizadas em Viamão, onde um complexo habitacional real faz as vezes do cenário identificado no título. A preocupação é desbaratar a imagem de que há comunidades somente no Rio de Janeiro:
— É uma estética mais fria por aqui, não temos muito sol. Entendemos que a referência nacional é algo quente e buscamos adaptar isso às cenas, então foi desafiador para nós também — garante o diretor Gabriel Faccini.
Mesmo interessado na comédia, Amaurih entrega que a maioria de seus projetos tem sido para papéis dramáticos. Acredita que tudo é muito verossímil. Por isso, fica contente em ver essa intenção de mostrar o país como ele é de fato:
— Vejo todos trabalhando para que dê certo e todo mundo está dando seu melhor mesmo. Ninguém está vindo para viver um “faz de conta” — finaliza.