*Adriana Amaral é pós-doutora em Comunicação, Mídia e Cultura pela University of Surrey (Reino Unido, professora do PPG em Comunicação da Unisinos e pesquisadora do CNPq sobre fãs e cultura pop
Os estudos de fãs são uma área relativamente jovem — embora tenha antecedentes anteriores mais voltados à psicologia, alguns pesquisadores consideram o início dos anos 90 como o princípio desse campo de expertise — que se encontra na interseção entre a sociologia, a antropologia, os estudos culturais e os estudos de audiências midiáticas e podem nos ajudar a compreender diversas formas de mobilizações e questões relacionadas às identidades, usos e apropriações da mídia pelos fãs de cultura pop. No Brasil, esse campo de pesquisa tem início a partir dos anos 2000 sobretudo em áreas como a Comunicação e as Letras e tem estudado de que forma os fãs brasileiros se apropriam e se comunicam, seja a partir de produtos globalizados, como por exemplo uma série produzida fora do país como Game of Thrones da HBO, até suas próprias celebridades ou produtos como a cantora Anitta, apenas para citar dois exemplos.
A definição de fã é tradicionalmente associada ao entretenimento, na qual uma pessoa (ou uma comunidade de fãs, chamada fandom) passa a admirar uma celebridade ou obra midiática, como por exemplo, estrelas de cinema, séries de literatura, de TV e histórias em quadrinhos. A diferença entre o público “comum” e o fã normalmente se encontra nos níveis de engajamento e pelo tipo de experiência — seja ela individual ou coletiva.
O fã possui uma experiência mais aprofundada e engajada que pode ser através do consumo e da própria produção de conteúdo entre outras formas. Muitos estudos indicam que há também uma forte apropriação para a vida cotidiana dos fãs, incidindo desde a escolha de produtos, forma de vestir e de se portar até opções de carreira por exemplo. Os pesquisadores compreendem que em muitos casos as identidades culturais dos fãs são também construídas a partir desses produtos. Como salienta o pesquisador inglês Cornell Sandvoss, é praticamente impossível discutir fenômenos do consumo popular sem debater a importância dos fandoms, assim como é difícil encontrarmos domínios da vida pública que não são atravessados pela cultura de fãs como futebol e as celebridades, entre outros.
Nesse contexto, um fenômeno transnacional de alta visibilidade midiática como a série de televisão Game of Thrones, produzida a partir da série de livros de fantasia Uma Canção de Gelo e Fogo (A Song of Ice and Fire) do escritor estadunidense George R R Martin, é um objeto rico para pensarmos na forma como os fãs a experimentam e que tipo de competências midiáticas são desenvolvidas por eles. Como em todo fenômeno da cultura pop, as disputas — as populares “tretas” — e não o consenso estão enraizadas nas relações dos fãs com os produtores e o produto desde o seu lançamento. Os fãs sempre se mobilizaram em torno de seus objetos de afeto. Os antecedentes da cultura de fãs por exemplo mostram as fãs do poeta romântico inglês Lord Byron o seguindo pelas ruas de Londres, as cartas dos fãs pedindo o retorno de Sherlock Holmes para o escritor Arthur Conan Doyle, os fanzines das fãs de Star Trek nos anos 60 enaltecendo a personagem Tenente Uhura e até mesmo no Brasil, na era de ouro do rádio, havia a disputa entre os fãs das cantoras Emilinha Borba e Marlene. O que vemos com a popularização da internet e dos sites de redes sociais, no entanto, é uma amplificação dessas práticas, assim como o próprio uso das empresas e produtoras de mídia para fomentar ações de fãs.
No caso de Game of Thrones, as disputas sempre estiveram presentes para quem acompanhava e chegou até no público não-fã. Estabeleceu-se as rixas entre quem preferia os livros e não veria a série, quem compreendia ambas como instâncias separadas em sua adaptação; havia a disputa em relação aos spoilers, quando, por exemplo, a exibição começou a ser simultânea do Brasil com os Estados Unidos; discussões sobre a falta de diversidade e o tratamento dado às personagens femininas e finalmente nessa última temporada a discussão a respeito da descaracterização dos arcos narrativos dos personagens e a decepção de boa parte do público com o desfecho apressado. O incontável número de memes ironizando as escolhas dos roteiristas e o descontentamento dos fãs tem invadido as timelines do Twitter, Instagram e Facebook a cada final de domingo. Até uma petição foi organizada com assinaturas para que o canal HBO refaça a oitava temporada da série.
Para o público “não-fã” talvez tudo isso seja excessivo, mas para os fãs após anos de investimento emocional na narrativa, seu entendimento é de que o produto midiático também é deles e que sua interpretação deve ser levada em consideração. Fãs são audiências engajadas que constroem suas próprias exegeses ao discutir os “produtos midiáticos” de forma a dissecá-los, ampliando os universos e manipulando os sentidos e explorando possibilidades que podem nem ter sido pensadas pelos produtores. Dessa forma, negar a importância dos debates intensos proporcionados pelas comunidades é não compreender a importância da discussão sobre formatos de escrita criativa e até mesmo das questões de cunho político e social que transparecem nas imagens dos memes que circulam e são produzidos pelos fãs. Compreender e interpretar tais relações proporcionadas por um produto ficcional diz mais a respeito de nossa organização enquanto sociedade e enquanto “seres escreventes” que contam e recontam suas estórias, do que sobre a série em si mesmo.
Para além da disputa entre quem gostou e quem não gostou da temporada, as intensas articulações entre mídia, cultura popular e literatura desvelam aspectos importantes sobre a produção, afetividade e a criatividade humana, nos fazendo repensar nossa própria forma de estar e se engajar nas experiências cotidianas e como nos enunciamos enquanto indivíduos e coletivos. Nesse sentido gosto, ao contrário do ditado popular, se discute sim e a construção do mesmo revela os fios narrativos que constituem nossas relações mais profundas com nossos objetos de afeto, sejam eles uma série de TV ou um time de futebol. Game of Thrones poderá até ter um fim considerado insatisfatório pelos fãs — o que provavelmente acontecerá — mas já faz se torna um “clássico” no panteão efêmero da cultura pop que será referenciado e que terá seu universo explorado por muito tempo.