Depois de um dia de muita correria, nada como chegar em casa, sentar no sofá e se desconectar da rotina acelerada diante da TV, assistindo à grama crescer, à tinta secar e à lenha queimar. Esse é mais ou menos o espírito da chamada Slow TV, que eleva ao grau de arte e entretenimento a mera proteção de tela. O conceito começou a ganhar corpo na Noruega, em 2009, e consiste na exibição de longas maratonas com imagens em que, basicamente, nada acontece além do registro de uma situação banal conduzida por sua (in)ação espontânea e pelo imponderável. Nos últimos anos, emissoras como a britânica BBC viram o potencial de audiência dessa inusitada atração e até mesmo a Netflix já reforçou seu cardápio com títulos como os autoexplicativos Lareira crepitante e Ventinho refrescante, este com um ventilador espalhando sua brisa imaginária.
A primeira investida da rede de TV pública Norwegian Broadcasting Corporation no formato foi Bergensbanen – Minutt for minutt. Exibida em 27 de novembro 2009, empolgou os telespectadores com uma viagem de trem por sete horas entre as cidades de Bergen e Oslo. Em setembro de 2010, Flåmsbana – Minutt for minutt alcançou um resultado mais supreendente: cerca de 40% dos aparelhos de TV ligados assistiram aos 58 minutos de outra rota sobre os trilhos.
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Os programas seguintes capricharam na produção. Hurtigruten – Minutt for minutt, de 2011, uma viagem de barco que durou 134 horas, foi transmitido ao vivo por 11 câmeras instaladas na embarcação. O menu foi variando, e a audiência, crescendo: pesca de salmão, fogueiras ardendo, maratonas de tricô, leituras de episódios históricos, pássaros ciscando, mudanças de maré. Tudo ao vivo, com multidões hipnotizadas e grande movimentação nas redes sociais.
A matriz da Slow TV, porém, não é nova. O noruegueses incrementaram uma iniciativa que o canal de TV dos EUA WPIX teve em 24 de dezembro de 1966, quando colocou no ar Yule log, telefilme com quatro reconfortantes horas de uma lareira queimando ao som de músicas natalinas.
Anos antes, esse conceito de entretenimento, digamos, terapêutico havia já sido explorado na seara do cinema expandido que dialoga com as artes visuais. O referencial artista plástico norte-americano Andy Warhol (1928 – 1987), por exemplo, apresentou em 1964 o filme experimental Sleep: cinco horas e meia de seu namorado tirando uma soneca. Cabe lembrar ainda o inventivo documentário Five (2003), com as sequências de imagens captadas à beira-mar pelo cineasta iraniano Abbas Kiarostami (1940 – 2016).
Com seu reconhecido padrão de excelência, a BBC lançou em dezembro de 2014 a série BBC Four goes slow, que investe na Slow TV com programas na "linha a vida como ela é”, sem narração e efeitos sonoros de pós-produção. Entre viagens de barcos e ônibus, manufaturas de produtos diversos e cantos de pássaros, o carro-chefe é National Gallery: A film by Frederick Wiseman. Um passeio de três horas pela renomada galeria de arte é conduzido por Wiseman, 86 anos, um dos mais importantes documentaristas em atividade. A produção, que registra com um envolvente trabalho de montagem o movimento dos visitantes e as explicações dos guias sobre obras expostas na instituição, integrou mostras de importantes festivais, entre eles Cannes, e listas de premiações cinéfilas.
Nos EUA, a Slow TV tem sido tema de reportagens como a do jornal The Washington Post, que lançou o questionamento: esse tipo de atração teria apelo fora da Escandinávia, junto a um público que hoje dedica cada vez mais tempo a consumir seriados e as muitas opções de entretenimento disponíveis na internet e nos serviços de TV convencionais e por streaming? O interesse pela monotonia que fisga o espectador de um país com elevado grau de civilização e qualidade de vida se repetiria em outros lugares?
Entrevistado na longa reportagem, Thomas Hellum, um dos idealizadores do formato no canal público norueguês, disse:"Eu não creio que somos particularmente estúpidos ou estranhos para gostar desse tipo de coisa. Acredito que possa sim funcionar em outros países". Canais independentes e públicos dos EUA já apresentam atrações no modelo, assim como a Netflix americana, que colocou em seu catálogo muitos desses sucessos de audiência noruegueses.
Em sua recente adesão ao formato, a Netflix retomou com Lareira crepitante (disponível no Brasil) a ideia do Yule log de 1966. No serviço por streaming, o calor virtual pode ser assistido em duas versões: uma hora de lenha queimando e estalando in natura, com resolução de imagem 4K (ultra HD), e no formato de série, isso mesmo, com esse e outros dois episódios da mesma coisa variando a trilha sonora – recurso que impõe à narrativa momentos de drama, tensão e romance. "Sem fumaça ou risco de incêndio", como entrega a sinopse.
Lareira crepitante
Hurtigruten – Minutt for minutt
National Gallery: A film by Frederick Wiseman