Esta reportagem foi produzida por Julia Hoppe, aluna de Jornalismo na UFRGS e uma dos cinco vencedoras da edição 2024 do projeto Primeira Pauta RBS
Aproximadamente três horas. Esse é o tempo que o ator e professor de teatro de 27 anos Gengiscan leva para se transformar em outra pessoa. Alguém com quem ele divide o mesmo corpo, mas que tem sua própria voz, trejeitos e alma: a drag queen Abigail Foster.
A arte do transformismo, acompanhada pela utilização do termo “drag” (em inglês, ‘arrastar’ - uma referência às longas anáguas que deslizavam no chão do palco durante as apresentações teatrais) tem seus primeiros registros datados do século XIX, época em que a atuação, incluindo os papeis femininos, era designada apenas aos homens. No Brasil, as primeiras manifestações dessa arte são caracterizadas por personalidades como Miss Biá e Vera Verão, em meados dos anos 1960.
Em 2009, o reality show RuPaul's Drag Race estreou na emissora norte-americana LogoTV. Desde então, o programa e a própria RuPaul se consolidaram como as maiores referências de drag queen na mídia e no imaginário do público. O reality foi fundamental para a popularização da expressão artística e inspirou a criação de fenômenos como Pabllo Vittar e Gloria Groove.
Abigail Foster é atriz, intérprete e viúva de uma quantidade indefinida de maridos. Criada em 2016, a personagem traz aos palcos as influências teatrais de seu criador e adota uma estética mais sóbria, quase sombria, performando canções embebidas em uma melancolia que prende o olhar.
Natural de Pelotas, no sul do Estado, Gengiscan define a cidade de Porto Alegre como “um lugar de grande exploração artística e de muita efervescência cultural” e, ao pensar nas futuras gerações de performistas que se desenvolvem na cena local, reforça a importância de manter por perto o legado que a comunidade LGBT+ construiu ao redor dessa arte.
— Acho que as novas gerações só vão continuar se inovando se elas continuarem olhando para o passado. Não se faz nada novo, não se constrói nada novo sem olhar para o que veio antes. Não existe uma separação. A gente fala das drags que vieram antes, mas elas não só vieram antes, como ainda estão aqui — diz.
Apesar do orgulho que demonstra ao falar de seus ascendentes culturais, o ator prevê uma possível obsolescência alcançando essa ideia de uma drag aos moldes de RuPaul, resumida ao pop, à festa. Com projetos como o Drag Brunch POA, Abigail Foster busca ocupar um espaço que vá além da vida noturna e do teatro, em uma afirmação de que a arte drag, assim como qualquer outra, é de todos os lugares e para todos os públicos.
— Drag é uma arte, assim como teatro, dança, música, arte visual. Não é uma coisa à parte. A gente precisa olhar para a drag como uma opção de entretenimento, de arte política, possível em diversos lugares —argumenta.
O discurso de Gengiscan inclui o ideal de que ser drag queen é um ato intrinsecamente político. Exercer uma arte que não se submete aos padrões de gênero exige a coragem de enfrentar certos estigmas tão enraizados na sociedade. O ator encara o panorama da cena atual com esperança, mas mantém os pés no chão:
— Não acredito em uma utopia de que a minha arte vai acabar com o preconceito contra a comunidade LGBTQIA+ ou contra a arte drag, porque se eu fizer isso eu vou cansar o meu trabalho. Quero poder falar para quem quer me ouvir, poder conquistar novos corações e talvez quebrar algumas barreiras — declara, confiante.
Um lar para chamar de seu
Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 5,1% da população se reconhece como homossexual ou bissexual em Porto Alegre. Inspirados pelo universo de RuPaul's Drag Race e motivados pelas demandas da população LGBT+ da capital, Rodrigo Borges e seu sócio Gabriel Bittencourt fundaram em 2017 o drag bar Workroom.
— A Workroom vem ocupando um espaço muito bacana. Além de ser um lugar de entretenimento, ela oferece muita pauta para ser refletida, debatida. É um espaço seguro para pessoas LGBTs e que tem uma equipe formada, na maioria, por pessoas LGBTs. E é muito legal saber que em Porto Alegre, dentro de um estado que tem um viés conservador, a Workroom vem para, de alguma forma, romper essa barreira — diz Rodrigo.
Ao longo de seus quase oito anos de funcionamento, o bar sediou festas, shows e ballrooms, se tornando um ponto de referência para o meio drag nacional. O fenômeno foi tão grande que mais de 10 participantes americanos do Drag Race original já viajaram até a Capital só para visitar o bar e deixar seus autógrafos escritos com batom vermelho nos espelhos que decoram as paredes de tijolinhos à vista.
Receptivo, Rodrigo oferece o palco para aqueles que buscam a experiência de se montar pela primeira vez e externalizar novas versões de si, presenciando todos os meses o nascimento de novas personas.
— Acho que a cena vem crescendo cada vez mais e as gerações vem mudando. Acho que a gente tem que ter muito respeito pelas drags que iniciaram, que abriram portas, mas também pensar nas drags que estão chegando com novas propostas de performance, que também trazem muita questão política, muita atualidade — declara.
Mas, afinal, existe mulher drag queen?
Aos 42 anos, a bailarina e coreógrafa Aline Karpinski enxergou uma limitação no território tão familiar dos palcos: a falta do exagero. Na dança clássica, tudo é calculado para ser expressado na medida certa. Nada a mais, nada a menos. Inconformada, decidiu ir em busca de algo que pudesse comportar todo esse exagero performático que sentia a necessidade de extravasar.
O Pimp my Drag, oficina comandada por um dos maiores nomes da cena queer gaúcha, a drag queen Cassandra Calabouço, foi o pontapé inicial de Aline para o descobrimento de uma nova parte de si. Hoje, cinco anos depois, a bailarina tem seu alter ego batizado como Alpine, A Grande.
— E eu comecei a notar que outras mulheres iam ao teatro assistir os nossos espetáculos e diziam: ‘É uma mulher? Ah, então eu também posso fazer — relata.
O recente sucesso da cantora e drag queen americana Chappell Roan tem inspirado discussões nas redes sociais. Um estudo realizado pelo PhD em filosofia do teatro Jonathan Graffam-O’Meara e publicado no portal The Conversation, analisou comentários que promoviam a desvalorização da performance da artista apenas pelo fato de ser mulher e concluiu: “Drag pode ser uma performance do gênero oposto, mas também pode abrir espaço para diversas performances de gênero serem exploradas”.
Aline conta que retrata a arte drag como inspiração para afirmar o feminino dentro de si, para externalizar aquilo que normalmente não é bem visto pela sociedade e convida qualquer um a dar uma chance para a arte.
— Todos esses trabalhos têm que acontecer como uma maneira de imposição. De dizer ‘sou artista, estou aqui, é assim que eu penso.’ Mesmo que seja polêmico, mesmo que as pessoas não gostem. A gente nunca sabe como essa arte vai ser vista daqui a um tempo, então a gente tem que bancar isso — completa.
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