Esta reportagem foi produzida por Ana Claudia Gonzalez, aluna de Jornalismo na UFRGS e uma das cinco vencedoras da edição 2024 do projeto Primeira Pauta RBS
Quando Amarildo Moreira, de 61 anos, fala da sua experiência com a Justiça Restaurativa, ele fala também de acolhimento. Nascido em Caxias do Sul e fruto de um contexto familiar marcado pela violência e pela vulnerabilidade socioeconômica, Amarildo foi detido pela primeira vez aos 14 anos e encaminhado para a Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (Fase). Até completar 18 anos, ele presenciou mais situações de desamparo.
— Era bruto, os agentes diziam pra gente se preparar pra penitenciária — lembra.
Para Amarildo e outros menores infratores, a ressocialização não era uma realidade possível.
Ao atingir a maioridade e ser solto sem passar por reabilitação, Amarildo seguiu cometendo crimes. Foi responsável por diversos assaltos a bancos na Serra e chegou a figurar na lista dos 10 homens mais procurados do Rio Grande do Sul. Quando foi detido, a punição foi tão dura quanto suas infrações: passou 32 anos preso em regime fechado antes de progredir, em 2016, para o semiaberto, situação na qual permanece até hoje.
Nas mais de três décadas encarcerado, Amarildo concluiu os estudos e trabalhou. Mesmo assim, o retorno à vida no lado de fora não ocorreu do modo como esperava — foi recebido sem a oportunidade de construir um futuro diferente do passado.
— Muitos egressos se perdem pelo caminho porque não têm acolhimento — reflete.
Foi através da Justiça Restaurativa que Amarildo enxergou a verdadeira possibilidade de um novo futuro fora do sistema prisional. A juíza responsável por seu caso permitiu que ele e outros detentos do regime semi-aberto participassem de Círculos de Construção de Paz, uma das estratégias utilizadas pela Justiça Restaurativa que consiste em rodas de conversa, onde todos são ouvidos de igual para igual. Os círculos são mediados pelos facilitadores, que podem ser psicólogos, advogados ou assistentes sociais que passam por uma formação específica para exercer o cargo.
Através desses diálogos, Amarildo teve a oportunidade de processar seus sentimentos quanto ao cárcere através da troca de experiências com pessoas em situações similares à sua. Além disso, ele pôde reconhecer seus erros e estabelecer novas estratégias para o futuro. A motivação adquirida através das conversas impulsionou ainda mais a vontade de mudança que já crescia dentro dele.
— Eu comecei a participar e foi justamente o farol onde eu consegui achar uma luz — conta — Eu encontrei pessoas que não estavam ali pra questionar o que eu tinha feito, e sim me acolher e me ajudar a me posicionar e permitir que eu encontrasse os meus valores.
Justiça Restaurativa pode representar um meio de mudança
O então desembargador do Tribunal de Justiça do Estado Leoberto Brancher foi o responsável pelo contato de Amarildo com a Justiça Restaurativa. Em 2004, ele participou da criação do Núcleo de Justiça Restaurativa da Escola da Associação de Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), iniciativa pioneira no Brasil, e desde então vem representando a batalha pelo reconhecimento e difusão das práticas restaurativas de justiça em todo o país. Hoje aposentado, Brancher define a Justiça Restaurativa como uma nova visão sobre o crime e o conflito que subverte a noção de punição e culpa.
— Ao invés de ter um foco na lei, no culpado e no castigo, você tem o foco no dano, na pessoa atingida e na reparação desse dano — explica.
As práticas restaurativas de justiça foram oficialmente consolidadas no Brasil em 2016 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No mesmo ano, também foi instituído o Comitê de Justiça Restaurativa, que visa promover e regulamentar o método no sistema judiciário brasileiro.
— Ao longo dos anos, o conceito evoluiu do campo específico do crime e adquiriu esse viés de uma filosofia sobre relacionamentos — observa Brancher.
A Justiça Restaurativa pode ser definida como um método de resolução de conflitos, e aplicada tanto na esfera criminal quanto em outros contextos, como em casos de bullying escolar ou de tensões entre familiares. Hoje, apesar de, segundo Brancher, 98 cidades brasileiras terem leis específicas em relação ao método, não existem estatísticas unificadas sobre sua utilização. A prática visa responsabilizar o ofensor, empoderar a vítima e ajudar todas as partes a chegarem a um acordo de reparação que seja satisfatório e justo para todos. A psicóloga e facilitadora de práticas restaurativas Rafaela Duso explica que a Justiça Restaurativa pode ser utilizada também como uma ferramenta de caráter preventivo.
— Onde tem gente, a Justiça Restaurativa pode ser aplicada.
Casos criminais podem chegar às mãos dos facilitadores de Justiça Restaurativa de diversas formas — os próprios envolvidos nos casos podem requisitar a mediação através de práticas restaurativas para um juiz, que então avalia o caso. Além disso, o artigo 319 do Código Penal brasileiro fundamenta a possibilidade de um juiz analisar a viabilidade da implementação da Justiça Restaurativa nos casos pelos quais é responsável, o que pode ocorrer em qualquer uma das fases do processo criminal.
Isso foi o que ocorreu no caso da advogada Daiane Vidor, de 41 anos. Em 2002, aos 19 anos, Daiane, sua mãe e seu filho, que então tinha oito meses, foram rendidos dentro de casa por três infratores armados, que os trancaram dentro de um quarto e roubaram seus pertences. No mesmo dia, os três foram detidos, e Daiane e sua família descobriram que eles eram seus vizinhos de bairro e dois deles eram menores de idade — um deles tinha apenas 14 anos. Quando o caso chegou às mãos do juiz Brancher, por conta da proximidade entre os infratores e as vítimas, ele sugeriu que a Justiça Restaurativa fosse aplicada através de Círculos de Construção de Paz.
— Como nós éramos vizinhos, a ideia era tentar conciliar e entender porque eles tinham feito aquilo com alguém que eles iriam cruzar em algum momento da vida — explica Daiane.
Após a sugestão do juiz, Daiane e sua mãe aceitaram participar de uma série de diálogos com os dois menores de idade envolvidos no crime e suas famílias. Como a Justiça Restaurativa não substitui o processo criminal em curso, ambos os infratores já haviam sido encaminhados para a Fase e também concordaram em comparecer às rodas de conversa. Na época, as práticas restaurativas ainda davam seus primeiros passos no Brasil, e por isso o caso de Daiane é considerado pioneiro. Para a vítima, o método foi um meio de processar o trauma do delito sofrido e enxergar o lado humano dos infratores que, até então, representavam para ela apenas uma ameaça.
— Nos deu a tranquilidade de que, com eles, a gente não precisava mais se importar, porque não iam mais fazer aquilo — conta.
Reconstrução através do diálogo
Para Amarildo, o contato com a Justiça Restaurativa foi transformador. Após participar das rodas de conversa com outros detentos e perceber o potencial de transformação proporcionado pela prática, decidiu, ele próprio, passar pela formação para se tornar facilitador de práticas restaurativas. Hoje, Amarildo auxilia na mediação de rodas de conversa entre menores infratores com o objetivo de servir como um exemplo vivo da possibilidade de reabilitação. Ele pretende ser, para esses jovens, a figura que lhe faltou durante seu tempo detento na Fase.
— É gratificante pra mim ver que outros companheiros estão saindo do sistema e vivendo suas vidas com dignidade — comemora.
Mesmo anos após sua saída do regime fechado, Amarildo segue ressaltando a importância do reconhecimento de seus erros para o sucesso do seu processo de ressocialização.
— Eu paguei pelos meus erros e continuo pagando, mas é justo que eu tenha a oportunidade. E a oportunidade gera a possibilidade de fazer algo diferente.
A visão de Daiane quanto ao conceito de justiça também foi transformada através das práticas restaurativas pelas quais passou.
— Eu queria estudar Direito pra virar juíza e prender todo mundo — lembra. Após o contato direto e humanizado com os infratores que a vitimaram, no entanto, sua perspectiva sobre punição e reparação de danos foi transformada — e suas ambições também.
— Depois dessa experiência, eu comecei a ver outro lado dessas pessoas, que têm todo um contexto por trás. E aí eu resolvi advogar na área criminal.
Para Brancher, a possibilidade de utilização da Justiça Restaurativa para mais âmbitos da esfera criminal perpassa uma série de obstáculos, mas o principal deles é a resistência de uma sociedade de viés punitivo.
— Quando você para pra pensar sobre isso, você vai vendo como as pessoas são educadas dentro dessa dinâmica — observa — Então você mudar a visão sobre a justiça significa também você mudar essa visão para cuidar das pessoas, para ter uma escuta da consequência de algo que ela sofreu. Significa buscar responsabilidade ao invés de culpa, e diálogo ao invés de perseguição.
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