Esta reportagem foi produzida por Arthur Reckziegel, aluno de Jornalismo na Unisinos e um dos cinco vencedores da edição 2024 do projeto Primeira Pauta RBS
— Mãe, quando eu vou voltar a jogar futsal?
Era a pergunta que o pequeno Enzo, 9 anos, mais fazia quando teve a sua casa em Canoas tomada pela água em maio. Mesmo com a cidade devastada, o que o garoto mais sentia falta era de jogar bola. Em meio ao drama da enchente, reencontrou a alegria através do esporte.
Ele é uma das 130 crianças contempladas pelo Projeto Essência, no bairro Rio Branco, que, mesmo afetado pela inundação, realizou uma força-tarefa para retomar as atividades o quanto antes. Afinal, o que os garotos mais queriam era voltar a jogar.
— A água chegou até o teto, não teve o que salvar. Ficamos mais de dois meses sem conseguir treinar por conta da enchente. As crianças sentiam muita falta, me ligavam diariamente perguntando quando iríamos retornar — relembra Jefferson Marques, professor responsável pela coordenação do projeto.
— Ficar sem o projeto durante esses meses não foi bom. Fiquei muito feliz em retornar — descreve Enzo, que se diz apaixonado pelo futsal.
Por conta da tragédia climática, a família do menino sofreu com perdas irreparáveis.
— Um dia antes do Dia das Mães, estávamos enterrando minha sogra recém-falecida. O pai dele ficou muito abalado. Teve de ser internado por conta de uma tentativa de suicídio e hoje apresenta sequelas. Estamos aprendendo juntos, como família, a viver nessas condições — conta Lilian Farias de Souza, a mãe do Enzo, contendo as lágrimas.
Apesar do momento delicado, ela conta que o Essência teve papel fundamental durante esse período de tristeza.
— O projeto é fundamental para famílias que não têm condições financeiras como a nossa, traz força para nós, para o meu filho e a esperança de uma vida melhor. Aqui todo dia é uma luta. Agora eu vim para o ginásio de bicicleta, mas venho a pé se for preciso — descreve Lilian.
Como fazer para manter o sorriso das crianças em situações extremas como esta? Como fazer com que elas continuem a sonhar? São perguntas, muitas vezes, sem resposta.
— Sonhar é algo bem difícil para eles porque perderam suas casas e a dignidade da moradia — diz Jefferson.
Apenas alguns quilômetros dali um outro grupo de crianças também tem suas vidas transformadas através do esporte. É no bairro Centro que está a sede do Projeto Primeiro Saque, que começou com o tênis dez anos atrás e hoje oferece seis modalidades. São elas: futebol, natação, capoeira, judô, vôlei e o próprio tênis.
— Atendemos 100 crianças de 6 a 12 anos, vindas aqui da rede pública de Canoas, de casas de acolhimento. Todas em situação de vulnerabilidade social — informa o idealizador do projeto, Matheus Triska.
Como não foi atingida pela água, a estrutura serviu de abrigo para muitas famílias das redondezas.
— As atividades ficaram paradas apenas por uma semana, porque os pais manifestaram a necessidade de as crianças terem um lugar para convivência — descreve Michele Jubin, coordenadora do Primeiro Saque.
Dentre as famílias abrigadas ali, destaca-se a do Bernardo.
— Quando minha casa foi atingida, ficamos um tempo nas estruturas do projeto. Estou no Primeiro Saque há mais ou menos um ano. Aqui é um lugar legal aonde eu fui muito bem acolhido — diz o menino de apenas 8 anos.
Durante o retorno, a atenção estava exclusivamente fixada no emocional do grupo.
— Tivemos uma grande preocupação em relação aos impactos das enchentes na saúde mental das crianças. Muitas perderam a referência da sua casa e dos seus próprios brinquedos, por exemplo — relata o psicólogo social e esportivo, Augusto Kauer da Silveira.
Em pesquisa realizada pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em junho deste ano, constatou-se a partir da análise das respostas de um questionário aplicado ao longo de três semanas, que 9 em cada 10 moradores do Estado estão afetados psicologicamente pela chuva que atingiu o território gaúcho.
Para o psicólogo do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), Eduardo Cillo, o esporte é fundamental para a recuperação desses jovens que sofreram traumas durante a enchente.
— A prática esportiva promove a socialização, tende a aumentar a autoestima e a autoconfiança, além de proporcionar a retomada da rotina que é um ponto fundamental nesse contexto — opina o especialista.
Kauer ainda cita que a metodologia adotada vai muito além da prática esportiva.
— Aqui fazemos uma oficina de autoconhecimento, em que tentamos abranger um aspecto de desenvolvimento integral trabalhando as emoções, os medos, os sonhos —destaca.
Para a Manuela, o Primeiro Saque se mostrou essencial quando mais precisava.
— Durante a enchente eu não vim para o projeto porque não estava muito bem de cabeça. Retornei no dia da capoeira, e me senti muito bem quando entrei naquela roda. O esporte acabou me ajudando bastante — relembra a menina.
Agora, recuperados da enchente, os projetos focam em manter vivo o sonho dos garotos.
— Meu maior sonho é ser médico e ajudar a minha família — almeja Enzo.
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