— Eu sou descendente da finada Frutuosa. Ali adiante, já é gente do véio Joaquim. Mas somos todos parentes. É um rastro de parentesco que a gente fica até meio banzo (risos) — diz Alceu Chaves Gomes, 53 anos, apontando para a casa de um vizinho avistada ao longe.
O agricultor fala dos antepassados comuns como quem cita o avô que lhe ensinou a andar de bicicleta, mas a árvore genealógica invocada por ele remonta aos primeiros negros que habitaram o Rio Grande do Sul, ainda no século 18. Ancestrais cuja memória sobreviveu ao tempo, Frutuosa e Joaquim estão entre os herdeiros do testamento que originou a comunidade onde Alceu e os vizinhos-parentes nasceram, cresceram e construíram suas famílias: o Quilombo Casca, em Mostardas, um dos mais antigos territórios negros de que se tem notícia no Estado, com 200 anos completados em 2024.
Margeada pelo Oceano Atlântico e a Lagoa dos Patos, a comunidade quilombola ocupa cerca de 2,3 mil hectares do que um dia recebeu o nome de Fazenda dos Barros Vermelhos. A propriedade pertencia a Francisco Lopes de Mattos e Quitéria Pereira do Nascimento, casal que, não tendo filhos, deixou-a como herança a 22 escravizados que ali viviam — incluindo "a finada Frutuosa", então criança, e "o véio Joaquim". Como condição, nenhum deles poderia vender ou se desfazer da terra recebida, que deveria ser passada "de um a outro como herança, para trabalharem e terem de que sobreviver".
Os pormenores da doação, que vem acompanhada da tão desejada alforria para os 22 herdeiros, estão registrados no testamento de Quitéria Pereira do Nascimento, datado de 1824. O ano marca a formação do Quilombo Casca, que foi visitado pela reportagem em meados de abril.
— Eu tenho orgulho de assumir a minha identidade, a minha cor e a minha história. Nós, que estamos aqui hoje, temos que nos orgulhar. Somos herdeiros dos herdeiros, dos escravos que conquistaram essa terra 200 anos atrás — afirma Alceu, guiando a equipe de Zero Hora pelas estradas de chão que atravessam a comunidade.
Evocada pelo quilombola de Casca, a noção de "conquista" é fundamental para se compreender a história deste e de outros territórios negros que se formaram naquela região ao longo do século 19, também fruto de doação de terras. É o que aponta a historiadora Cláudia Daiane Garcia Molet, autora de O Litoral Negro do Rio Grande do Sul: Campesinato Negro, Parentescos, Solidariedades e Práticas Culturais (Do Século XIX ao Tempo Presente).
— Tais doações não podem ser entendidas como bondade dos proprietários de escravos, pois elas são fruto das diferentes estratégias adotadas pelas pessoas negras que buscavam a liberdade. Isso também pode passar pela construção de boas relações com os senhores, por exemplo. A gente precisa compreender que, por trás disso, há trabalho e há luta do povo negro que foi escravizado.
A terra conquistada no testamento, fértil para o plantio de arroz, foi ameaçada de diferentes e violentas formas ao longo dos últimos 200 anos. A titulação do território do quilombo junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) veio somente em 2010, quando as 85 famílias que formam a comunidade puderam, enfim, respirar aliviadas. Ninguém iria tirá-los do chão adubado com o suor de seus antepassados.
— Só quem pode me tirar daqui é Deus. Aqui eu nasci, aqui eu me criei e aqui vou ficar até o fim da vida — diz Marieta Lopes da Rosa, a "Marião", 90 anos, uma das moradoras mais antigas da comunidade. — Sou mais conhecida que erva ruim (risos). Todo mundo me conhece e todo mundo me quer bem. Por isso que eu não o troco meu lugar por nada nesse mundo.
Tradições seculares
Escrita sobre as linhas da resistência, a história do Quilombo Casca também tem capítulos ancorados na mitologia popular. São causos que atravessaram os séculos, tal qual a lenda do "casqueiro" que originou o nome da comunidade — que é, na verdade, um sambaqui, espécie de duna formada por conchas e restos arqueológicos cuja idade não se pode precisar.
Localizado em uma das extremidades do território do quilombo, rodeado por dunas de areia, o casqueiro é considerado um lugar sagrado. A lenda é explicada no relato de Pedro Lopes da Rosa, o "Pedro Sola", idoso tido como sábio pela comunidade.
— De sete em sete anos sai uma luz de dentro dele. Bem dourada, vai indo, vai indo, até que se perde no céu. Dizem que é porque tem ouro embaixo das cascas, mas nunca ninguém mexeu. É um patrimônio nosso, tem que ser preservado.
O preto velho contou à reportagem algumas das principais lendas do quilombo, orgulhoso da história de seus antepassados. Algumas semanas depois, ele foi ao encontro dos ancestrais, concretizando aquele que é, hoje, o maior temor das lideranças de Casca: a morte dos mais velhos. São eles os guardiões dos saberes que mantiveram viva a cultura do quilombo, mas que vêm se perdendo pouco a pouco ao longo dos últimos anos.
É o caso do Terno de Reis, tradição de origem afro-açoriana que um dia foi a marca registrada da comunidade. Trata-se de um conjunto de músicos que vão de casa em casa para anunciar o nascimento de Cristo, com serenatas surpresa que viram a madrugada. O repertório começa com cânticos religiosos e termina em uma espécie de bailinho, reunindo moradores da casa visitada e quem mais quiser se juntar à celebração. Além do Terno de Reis, o mais tradicional, há também os Ternos de São João, São Pedro, Santo Antônio e Sant'Ana, realizados ao longo do ano, de acordo com o dia do santo homenageado.
Casca já teve ao menos uma dezena de grupos do tipo, que costumavam ser requisitados para cantorias em diferentes regiões do Estado. Hoje, porém, o cenário é outro.
— Antigamente, a gente pegava gaita, pandeiro e violão, ensacava tudo, botava nas costas e ia longe para cantar Terno. Montava no cavalo e saía, às vezes até na chuvarada. Cortava mato, atravessava sanga, íamos do Natal até o Dia de Reis direto, sem parar. Agora, é difícil conseguir reunir músicos para cantar Terno até dentro de Casca — lembra Antonio Lopes de Mattos, 75 anos.
Conhecido pela alcunha de "Zango", o idoso é, atualmente, o único "mestre de Terno" da comunidade — como são chamados aqueles que guardam os preceitos da expressão religiosa. Ele lidera o grupo remanescente da tradição do Terno de Reis no Quilombo Casca, formado também pelo violeiro João Rachel de Bittencourt, 68 anos, e José Lopes da Rosa, o "Zé da Gaita", de 65.
— Eu aprendi quando era bem novo, só que agora os jovens não têm interesse nessas coisas. Mas, enquanto a gente tiver vida e saúde, vamos continuar cantando — promete Zé da Gaita.
O gaiteiro teme que o Terno de Reis tenha o mesmo fim de outras tradições típicas da comunidade que acabaram extintas com o tempo, como o Ensaio de Promessa. O ritual sincretista mistura elementos da fé católica e das religiões de matriz africana para pagar a promessa de quem, na intenção de alcançar alguma graça, encomenda a cerimônia aos chamados "ensaiadores", geralmente ligados a Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.
Em Casca, o rito já não é realizado há cerca de 40 anos. A única comunidade que ainda cultua a tradição é o Quilombo dos Teixeiras, também em Mostardas.
— Para mim, são culturas muito estimadas. É triste ver tudo isso terminando — confessa Zango, que, além de mestre de Terno, integrou o grupo de Ensaio de Promessa.
Educação antirracista
Na luta contra o apagamento do legado cultural deixado pelos antepassados, a educação vem sendo o principal arsenal. O território do Quilombo Casca abriga a Escola Municipal Fundamental Quitéria Pereira do Nascimento, cujo projeto pedagógico é pautado na chamada "educação antirracista", que busca incluir a história e a cultura africana e afro-brasileira nos currículos escolares, em conformidade com a Lei 10.639.
No caso de Casca, os alunos estudam o próprio quilombo — que, apesar dos dois séculos de existência, não é lembrado pela historiografia oficial do Rio Grande do Sul.
— É um trabalho de formiguinha — admite Camila da Silva Rosa, 32 anos, professora da escola do Quilombo Casca, onde também vive.
— A nossa função é possibilitar que as crianças conheçam a própria história para que cresçam entendendo o que é ser quilombola. Mas é uma tarefa difícil, porque não se encontra quase nada sobre a história dos quilombos. Então, fazemos nossos próprios materiais — diz a educadora, mostrando livros e outros instrumentos pedagógicos confeccionados pelo corpo docente.
Ainda que localizada no território do quilombo, a EMF pode receber alunos de toda a região, mas somente 29 estão matriculados. A maior parte dos estudantes são moradores do próprio quilombo. Assim como a diretora, Cláudia Lopes de Mattos, 46 anos, que revela outro desafio enfrentado:
— O nosso grande problema é o baixo número de alunos, pois muitos pais da região não querem que os filhos estudem no quilombo, mesmo sendo perto. Não falam com todas as letras, mas sabemos que é isso.
— E quando a gente faz uma festa da comunidade, vem gente de tudo que é lugar. Mas, na hora de mandar os filhos para estudar aqui, ninguém quer — completa Alceu, que é marido de Cláudia. — Isso me deixa doente. Eu não aceito mais que o quilombo seja só lugar de festa — diz.
Militante da causa quilombola, o agricultor reflete que muitas foram as batalhas travadas e vencidas pela comunidade ao longo dos anos — da titulação da terra à reserva de vagas nas universidades próximas. Contudo, diz que o preconceito ainda é uma realidade com a qual os quilombos da região precisam conviver:
— Antes, quando a gente chegava, o comentário era: "Lá vem os nego de Casca". Hoje, não tem mais essa discriminação sem-vergonha, mas a gente ainda escuta coisas do tipo: "Ah, vocês agora estão com tudo. Não se pode falar mais nada para vocês que já vira racismo". Parece que querem que a gente aceite tudo quieto, baixe a cabeça, mas não vamos. O nosso povo nunca foi disso.