Por Celso Gutfreind
Psicanalista e escritor
Faço uma visita ao poeta Armindo Trevisan. Faz mais de 30 anos que o visito. Hoje sei que ele aprendeu, com seu amigo Erico Verissimo, a deixar aberta a porta de sua casa. Entro sempre que posso.
Ele está a um ano de completar 90. Deveríamos nos encontrar em um café, mas a noite está fria, e o Diabo para ele se chama umidade. Então, não vamos ao café, como temos ido, e ficamos na casa dele. No escritório dele. Seco e quente de um Split que considera sonoro, ritmado.
Armindo esbanja saúde. Ouve bem, vê bem (letras pequenas, inclusive), movimenta-se com agilidade e as mãos manchadas de vida pouco tremem para enfiar a chave na fechadura do portão do prédio, na rua Montenegro do bairro Petrópolis.
Está em paz com os livros. Já teve mais de 30 mil. Mas, por recomendações médicas (fungos, o Diabo da umidade), precisou se desfazer da maioria e chegar à difícil, senão impossível, síntese de uns 500. Ficaram o dicionário do Houaiss, toda a lírica de Camões, A Divina Comédia, outras antologias de poemas e filigranas de filosofia.
Aprendeu a desapegar-se com o amigo João Cabral de Melo Neto. Sobre isso, estamos escrevendo, a quatro mãos, um livro sobre esses encontros. Ele escreve um poema sobre o encontro com um autor e eu faço uma crônica titubeante sobre o que ele me contou. Estão ali, além do Armindo, muita gente muito boa, como Drummond, que considerava sua funcionária doméstica uma das maiores poetas que conheceu, por ser capaz de imagens inusitadas como “flor do ar”. Guimarães Rosa, um generoso, que considerava a si mesmo e ao Armindo como “meio cultos”. O João Cabral, que, além de ensinar o desapego, tecia altas considerações sobre o Diabo. Vinícius e Quintana, que bebiam mais do que Armindo. A encantadora Cecília Meireles, e tantos outros, com suas histórias maravilhosas.
Revisamos o livro, exaustivamente. E, como há algum tempo, Trevisan apanha um volume ou dois, entre os que restaram. Então, discorre sobre a luta de aprender a métrica perfeita de Camões, a lírica e a pessoalidade, introduzidas na França do século 11, a busca da comunicabilidade sem perder a profundeza, o que só interrompe para ler um poema ainda fresquinho, escrito à tarde.
Ao final da visita, interrompe meu agradecimento para trazer o seu. Lamenta, acolhendo, a minha falta de religiosidade para compreender a profundeza e a comunicabilidade do nosso encontro. Depois, repete o que vem dizendo nos encontros mais recentes. Que os considera fundamentais para que continue escrevendo poemas. Sinto-me constrangido, sem envergadura para isso. Ou com alguma, quando penso que, como psicanalista, consisto, sobretudo, naquele que resgata, no mar das neuroses, ondas de alguma poesia. E o fazemos sem grandes rodeios ou interpretações, ao contrário do que apregoavam os primeiros livros nessa área, embora tantos, mais recentes, já consideram o estar junto como o mais importante. Com Armindo, sou um amigo que está junto.
Daniel Stern, Bernard Golse, Victor Guerra, Anne Brun, entre outros, descrevem teórica e clinicamente o quanto a poesia, o sentimento e o pensamento do outro são fundamentais para a construção dos nossos. Sublinham a importância dos ritmos e do começo da vida, lá onde reside a poesia como alicerce de nossa subjetividade e, portanto, da nossa saúde mental.
Armindo chegará saudável aos 90. Sua maior lacuna, hoje, não está no corpo, que aprendeu a lidar com os desgastes inevitáveis. Está na alma, com a ferida aberta pela perda de amigos, muitos para a pandemia. Humilde e orgulhosamente, estou com ele, e aceito que isso colabora com a eclosão de uma poesia que estava como um fundo de poço com pouca água e muita alga (imagem dele). E me regozijo de ser um de seus outros. Porque um grande artista como ele está longe de ser um egoísta. Um artista conta com o outro para fazer a poesia de si mesmo e devolvê-la ao mundo de todos os outros que puderem encontrá-la.
Sobre o livro
- O Elogio do Encontro – Uma Prosa Íntima tem publicação prevista para março de 2023 pela editora Figura de Linguagem. Trata-se de uma das homenagens a Trevisan, que completará 90 anos em setembro – daqui a um ano, portanto. A obra será composta de um poema escrito por Trevisan especialmente para o livro sobre cada encontro com figuras célebres da literatura como João Cabral de Melo Neto, Erico Verissimo, Clarice Lispector, Cecília Meireles, Ferreira Gullar, Guimarães Rosa, Vinícius de Moraes, Mario Quintana e outros.
- "Exceções para Dante e Camões, a quem, por razões óbvias, Trevisan não conheceu pessoalmente, mas se considera um amigo. E o David Coimbra, a quem também considerava um querido amigo e cuja morte nos abateu durante a escrita”, relata Gutfreind, que, depois de cada poema, assinará uma crônica baseada nesses encontros.
- Gutfreind explica: “O mote para o livro deu-se quando, em um de nossos cafés costumeiros, ele e Cleuza (a esposa) lamentaram o extravio (momentâneo, espero) de cartas e bilhetes que trocou com esses bambambans. Muitos estavam dentro dos livros, incluindo alguns dos quais precisou se desfazer (foram para um contêiner) por questões de saúde. Mas, como essas histórias estavam todas também na sua lembrança, pensamos que o livro seria uma forma de resgatá-las, sem precisar da correspondência extraviada”.