Por Nina Fola
Cantora, percussionista, produtora cultural e socióloga
A oralidade tem sido pensada e descrita com maior evidência dentro dos estudos sobre a diáspora africana nos últimos 30 anos. Esses estudos constatam que a população negra diaspórica ainda carrega em seus corpos o legado do que foi possível de ser trazido e mantido, mesmo após a violenta viagem atlântica. Nos corpos, mora a memória existencial da ancestralidade, que se reedita em personagens como Mestre Churrasco.
O curta-metragem Berimbauzeiro é o registro da oralidade ancestral de Mestre Churrasco. Um filme que tem uma narrativa guiada pelo Mestre, sendo ele o narrador de suas histórias. Histórias de viajante, de curioso, impetuoso e criativo. Portanto, sem a linearidade cartesiana e com interlocuções potentes, cotidianamente desprezadas. O que vemos nos registros de seus jogos com o fogo, em sua voz de afinação precisa e nas sonoridades improváveis que ele consegue emitir nos instrumentos que constrói é nada mais do que o desenvolvimento tecnológico e pedagógico da oralidade negro-africana expressa na sua negridão.
A criatividade negra, regulada pelo racismo, não cabe no senso estético colonial e, muitas vezes, pode ser entendida como loucura, levando figuras muito parecidas com o Mestre Churrasco para espaços manicomiais. Mas o destino foi duplamente positivo, para o Mestre e para a Capoeira, pois ele encontra no legado ancestral da Capoeira sua mais popular e livre expressão, espaço de manutenção de sanidade, filosofia de vida, religiosidade e cura, materializados na construção de berimbaus; e a Capoeira conta com um dos seus mais distintos, criativos e sui generis amantes seguidores, contando e recontando a história da cultura, da cidade, das pessoas, enfim, a nossa história.
Mestre Churrasco nos coloca seu entendimento sobre a roda de capoeira como galeria para expor a sua arte. Ele afirma que seus instrumentos são de ordem contundentemente artísticas, ampliando e multiplicando as possibilidades de existências, inteligências na autoria dele e do objeto berimbau como obra.
Inventivo, é inspirado pelas manifestações da natureza, pelo que vê, sente e ouve em suas incursões pelo mato, com grupos de pessoas e só. Nesses momentos, Mestre Churrasco se inspira para criar músicas, poemas e reflexões sobre seu momento ou suas experiências múltiplas nos mundos, que se mostram múltiplos também.
Ilimitado pela criatividade, impregnado por sentir-se na plenitude do mundo e com a lida com seus instrumentos-colegas-filhos, Mestre Churrasco se permite brincar com suas obras como criança. Incrível como o espaço da cultura da Capoeira Angola foi o lugar onde Jean Batista dos Santos pôde Ser em sua infinitude preta, que dialoga com os pássaros, com árvores, couros, arco-íris e pedras. Nos mundos de Jean Batista-Mestre Churrasco, ele se apresenta como mais um no composto, mais um elemento compondo um universo de coisas sonhantes, brincantes, rasgando qualquer rede de captura e detenção.
No filme, a liberdade explícita do Mestre é digna e intensamente observada por nós, espectadores, que nos surpreendemos quando o filme termina. E, nesse momento, não sentimos o fim, sentimos a ampliação das possibilidades em Ser, inspiradas e inspirados pelo original Ser Mestre Churrasco.
O filme
Berimbauzeiro é um documentário de curta-metragem dirigido por Magnólia Dobrovolski, Marco Poglia e Mário Eugênio Saretta. Foi selecionado para participar do In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical, que começou na última quarta-feira e prossegue até o dia 26, com sessões presenciais em São Paulo e online para todo o Brasil (saiba onde ver em br.in-edit.org/filmes/berimbauzeiro). O filme é centrado em Jean Batista Cleber Teixeira dos Santos, o Mestre Churrasco, referência na produção de berimbaus. Líder e fundador da Associação de Capoeira Angola Zumbi do Palmares (Acazup), ele já viveu em Porto Alegre, Salvador e Rio de Janeiro e hoje reside em Caxias do Sul. Veja mais no Instagram, no perfil @berimbauzeiro–filme.