Por Ticiano Paludo
Doutor em Comunicação, professor da PUCRS
O ano era 1999. Eu, então com 26 anos, iria realizar um sonho impensado: ver o Kiss ao vivo. Melhor do que isso: ver o Kiss ao vivo em Porto Alegre. Mais mágico do que isso: ver o Kiss, ao vivo em Porto Alegre, com a formação original.
Como muitos fãs, meu contato inicial com a banda se deu na adolescência. Estamos falando de uma época em que não existia internet, TV a cabo, nem sequer MTV. Portanto, naquele tempo, informações sobre eles eram esparsas e nebulosas. Lembro de chegar do Colégio Anchieta e me fechar no quarto para ouvir incessantemente Alive!, um álbum que pensávamos ser ao vivo e que, hoje sabemos, é mais um dos simulacros do Kiss, pois é de fato meio ao vivo, meio editado e regravado em estúdio. Esse é um dos truques que o Kiss usa para encantar e seduzir seu público: a simulação.
Se no Brasil da década de 1970 Ney Matogrosso e os Secos & Molhados usavam pintura e maquiagem para se mascarar como seres imaginários, nos EUA o Kiss fazia o mesmo. Alguém copiou alguém ou foi mera coincidência cósmica? Pouco importa. O efeito inebriante é muito bom em qualquer dos dois casos.
Quanto terminava a graduação em Publicidade e Propaganda na PUCRS, decidi fazer um TCC sobre minha paixão: o Kiss. Aliás, esse fato se deu justamente em 1998, um ano antes de o Kiss pisar em Porto Alegre pela primeira vez, sendo o TCC, inclusive, matéria de Zero Hora. Naquela ocasião, com a profundidade que um aluno de graduação consegue ter, me interessava verificar se o Kiss poderia ser considerado um mito vivo, que basicamente consiste em fornecer modelos de conduta divinos a serem seguidos pelos mortais. O TCC revelou que era possível.
Já em 2017, lancei um livro, resultado da minha tese de doutorado, também na PUCRS, intitulado Mitologia Musical: Estrelas, Ídolos e Celebridades Vivos em Eternidades Possíveis (Appris). Nele, analisei o Kiss em perspectiva a David Bowie e Lady Gaga. Como é sabido, Bowie construía uma máscara social para cada álbum que lançava e depois a abandonava. Mesmo tendo enorme sucesso, nunca teve medo de cometer suicídios de suas personas para renascer em outras, sendo não Bowie, mas Bowies. Essa é uma tarefa corajosa e arriscada. Inegavelmente, ele a fez com maestria. Gaga, por sua vez, surge em um mundo que gira cada vez mais rápido, afogado pela economia da atenção, aquela maldição de Warhol dos 15 minutos de fama (que duram 15 minutos!), segundo o princípio de que, quanto mais se quer ter, menos se tem. Tempos líquidos enxaguando atenções líquidas.
A conquista do mundo pelo Kiss não foi imediata. Seu ponto de virada de reconhecimento se deu, justamente, a partir de Alive!, quarto álbum da banda, lançado em 1975. Como hoje fazem muitos artistas, um simulacro que constrói uma hiper-realidade mais real do que o real. O que demonstrei na tese é que, embora a certa altura o Kiss tenho tirado a máscara e tocado de cara limpa, os fãs estavam mais interessados em sua ressurreição mítica mascarada, que viria no fim dosa nos 1990. Se Gaga precisa matar um leão por dia para se reinventar (sendo atriz, cantando jazz ou vestindo carne), o Kiss assume a faceta de um verdadeiro mito – um mito circular, sempre previsível e confortável.
Como em um eterno retorno, a banda volta ao mito de origem fundador para assumir seu lado divino, voando pelo palco, cuspindo fogo e vomitando sangue. Da magia à sedução. É um pacto sagrado com os fãs. Mesmo que um de seus mentores, o empresário (mais do que músico) Gene Simmons (que nem é seu nome real, em outro simulacro) afirme que o grupo é um produto de marketing acima de tudo, e talvez por ser tão explicitamente sincero, eles continuam lotando os shows, em uma devoção herdada de gerações para gerações.
O Kiss é um trem fantasma com diversão garantida para toda a família.
Diferentemente de super-heróis tradicionais, o Kiss é um grupo de semideuses que se deixam tocar e fotografar, sempre mediante um bom pagamento de dinheiro real. Em uma época em que tantos tentam alcançar o estrelato, sentindo-se mais poderosos a partir das redes sociais digitais, o velho Kiss vem mais uma vez aí vigoroso demonstrar que um bom rock’n’roll ainda pode mover tantos corações quanto um influenciador digital. Vai ser meu quarto show do Kiss. Será o último? Lá estarão eles, vivos em eternidades possíveis.