Uma portaria publicada no Diário Oficial da União (DOU) na segunda-feira (8) proibiu a exigência do chamado passaporte vacinal em eventos financiados pela Lei Rouanet. A normativa, assinada pelo secretário especial da Cultura, Mario Frias, destaca que fica "vedado pelo proponente a exigência de passaporte sanitário para a execução ou participação de evento cultural a ser realizado, sob pena de reprovação do projeto cultural e multa".
— A lei garante a livre fruição aos bens culturais, que significa que todo brasileiro tem de ter direito ao livre acesso. As pessoas vacinadas têm esse direito e os não vacinados também têm esse direito. É uma obrigação nossa garantir o livre acesso à cultura. Não posso segregar por cor, raça, clero. Como gestor público da pasta, tenho que garantir que todos tenham acesso aos bens culturais — enfatizou Frias em entrevista ao programa Timeline, da Rádio Gaúcha.
De acordo com o secretário, o passaporte vacinal "obriga" as pessoas a se vacinarem, o que seria uma violação à liberdade individual.
Porém, para Cristiane Olivieri, advogada especialista em arte, cultura e entretenimento, essa portaria do governo federal está invadindo uma competência do Estado e, sendo assim, "ela não tem valor, não pode ser executada".
— A decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), no início da pandemia, diz que a competência na área da saúde pública é concorrente entre as três esferas, municipal, estadual e federal. A esfera municipal pode ser mais restritiva do que as demais, mas não pode ser mais aberta. Então, por exemplo, se o Estado diz que tem que exigir a carteira de vacinação, o município não pode dizer que não tem — explica.
Cristiane, então, reforça que o produtor tem de adotar o protocolo da cidade em que está:
— Ele tem que seguir todos, mas principalmente o do município, porque ele vai ser fiscalizado pela prefeitura e o governo federal não pode estabelecer penalidade para o cidadão que está cumprindo uma lei.
Para a advogada, apesar de a portaria ser "ilegal", ela ainda existe. E, caso a Secretaria Especial de Cultura, do Ministério do Turismo, decida aplicar a penalidade, tem de ser feita a discussão da ilegalidade da normativa. De acordo com Cristiane, a decisão "deve cair por ser inconstitucional", porém, ela reforça que "o mundo jurídico não é tão rápido quanto o executivo" e que reverter este decreto pode demorar meses, mesmo que o Ministério Público já esteja recebendo representações para tal.
— Isso deixa os produtores em uma insegurança jurídica muito grande, porque se ele cumpre a portaria, ele vai ser autuado pelo Estado, mas se ele exige a carteira de vacinação, ele corre o risco de receber alguma penalidade do governo federal. Mas, entre as duas possibilidades, a do governo federal não tem fundamentação jurídica e ele pode discutir administrativamente e, caso não consiga resolver, judicialmente — explica, reforçando que acredita que os produtores devem cumprir a legislação do Estado e do município.
Especialista em indústria criativa e entretenimento, a advogada Patrícia Goulart afirma que a portaria "não tem respaldo contratual e não tem respaldo legal".
— Se a pessoa cobrar esse passaporte vacinal, a normativa diz que a prestação de contas não será aprovada e isso pode gerar devolução dos recursos, só que essa publicação não se sustenta, porque ela é ilegal. Sob o ponto de vista jurídico, ela vai de encontro ao que a legislação prevê. Ela cria obrigações para terceiros, mas só quem pode criar essas obrigações e direitos é o legislativo — pontua.
Ela também aponta que o STF decidiu que os governadores têm legitimidade para impor medidas sanitárias restritivas na prevenção à covid-19, em prol da coletividade.
— Uma norma de um secretário do executivo não pode ser contrária ou criar conflitos com a lei — destaca. — Os projetos podem ser prejudicados se ela continuar na vigência e a saída pode ser judicial, se ela não for derrubada antes, porque ela não se sustenta.
Segundo Patrícia, a alternativa é pedir um mandado de segurança que garanta que o produtor poderá seguir pedindo o passaporte vacinal. Sobre a portaria, ela acredita que deverá ser anulada logo, "a partir de uma ação mais coletiva".
— A portaria fala que é em nome da liberdade do cidadão em não se vacinar, mas não existe direito absoluto quando a liberdade desse cidadão conflitua com a saúde de uma coletividade. E o cidadão sempre tem a liberdade de não ir ao evento — reforça.
A portaria, por sua vez, determina que locais em que leis estaduais ou municipais exijam o passaporte vacinal, como é o caso do Rio Grande do Sul, o projeto cultural deverá ser adaptado ao modelo virtual. E, para cumprir a determinação, o Instituto Ling, suspendeu o projeto Audições Comentadas de Música Erudita, que conta com financiamento da Lei Rouanet. A próxima edição do evento ocorreria nesta quinta-feira (11) em formato presencial.
A reportagem procurou a Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul (Sedac/RS) e o Piratini para comentar o impasse em relação à regra estadual, mas, até o fechamento deste texto, não obteve um posicionamento a respeito da portaria.
As dificuldades com a Lei Rouanet
Criada em 1991, a Lei Rouanet autoriza produtores a buscarem investimento privado para financiar iniciativas culturais. Para isso, os autores, que podem ser pessoas físicas ou empresas, submetem seus projetos à Secretaria Especial da Cultura e passam por avaliação.
Caso o projeto cumpra os requisitos do órgão, ele é aprovado. Com isso, o autor tem a permissão de procurar a iniciativa privada ou pessoas interessadas em apoiar financeiramente o evento cultural. Em troca, as empresas podem abater parcela do valor investido no Imposto de Renda.
Para o Porto Alegre em Cena, no entanto, mesmo cumprindo o que era exigido para poder usufruir da lei na edição de 2021, o evento não foi contemplado, algo inédito nos 16 anos de envolvimento do diretor-geral Fernando Zugno com a inciativa. O projeto ficou parado no sistema do governo federal e, mesmo tendo sido enviado dentro do prazo habitual pelos seus organizadores, não conseguiu contar com os recursos, sofrendo uma perda de R$ 500 mil.
— Quem sai perdendo nisso são os artistas e o público do teatro, a própria cidade, porque tem muito público em Porto Alegre. E o dinheiro é público, é dinheiro dessas pessoas, desse cidadão porto-alegrense, que deixou de ver mais espetáculos — desabafa Zugno.
De acordo com o coordenador do Em Cena, a proposta da Secretaria Especial da Cultura é para que os projetos não aconteçam. Sem obter qualquer satisfação por parte do governo federal, Zugno conta que a ausência da verba inviabilizou mais espetáculos e, consequentemente, empregar mais pessoas.
— Essa captação faz com que se gere e com que gire o dinheiro em um setor que é de extrema importância. E, além de não contar mais com o apoio de estatais, nem as empresas privadas, que estão dispostas e acreditam na cultura, estão podendo investir porque o governo federal está inoperante. É muito triste e dolorido — conta, temeroso que este cenário se repita no ano que vem. — Tendo mais recursos, a gente consegue empregar muito mais pessoas e colocar mais brasileiros em contato com a arte.
Já a Feira do Livro de Porto Alegre, que está ocorrendo na Praça da Alfândega desde o dia 29 de outubro, por conta da demora da resposta de esfera federal, chegou a ser cogitada para janeiro ou fevereiro do próximo ano, uma vez que, sem os recursos da Lei Rouanet, não poderia ser realizada. A liberação para captação de verbas acabou saindo, mas bem depois do prazo normal.
Segundo Isatir Bottin Filho, presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro (CRL), responsável pela Feira, o processo, antes de 2021, era "muito automático", com a apresentação do projeto para a Secretaria Especial de Cultura em novembro e, em fevereiro, recebendo a homologação e, assim, indo em busca das empresas para que patrocinassem o evento. Porém, neste ano, a liberação aconteceu somente em julho, dando um prazo apertado para a busca por recursos junto à iniciativa privada.
— Foi um sufoco, porque a data da Feira já estava marcada. Então, tivemos um tempo curtíssimo para captar, mas deu tudo certo. Conseguimos fazer a captação, mas não houve explicação sobre a demora. A comunicação estava muito difícil, eles só falavam que tínhamos que aguardar e que o processo estava tramitando. Não tínhamos uma resposta, ficamos apenas aguardando. Caso não saísse, a única alternativa era prorrogar a data — explica Bottin Filho.
Apesar da liberação para captação do dinheiro, a homologação do projeto e o cumprimento de todos os requisitos, a verba ainda não está disponível para ser acessada — mesmo com o evento já em andamento.
— Conseguimos captar a verba junto às empresas e ela fica depositada em uma conta bancária. E, depois, precisamos ter uma conta de movimentação, onde a gente vai fazer a operação deste dinheiro para pagar as despesas do evento. Essa segunda conta, que é de movimentação, ainda não foi liberada. E, segundo o pessoal de Brasília diz que isso se deve a um problema de TI. É um efeito cascata. Se uma coisa atrasa, as outras vão atrasando. E essas coisas vão prejudicando os eventos — lamenta o presidente da CRL.