“Sou um guri de Lavras.”
Era a frase de capa da saudosa revista de cultura Aplauso, em 2002, proferida por um Paulo José já sofrendo com o Parkinson, mas em plena atividade aos 65 anos de idade. Foi em parte por nunca ter deixado de ser isso, o menino do município gaúcho de 7 mil habitantes atravessado pelo Rio Camaquã, que ele se tornou um dos maiores, se não o maior ator que o Brasil já viu.
A trajetória combativa, de quem ajudou a fundar o Teatro de Equipe de Porto Alegre e integrou-se ao histórico Teatro de Arena de São Paulo, contrastava com uma ternura comovente, que o levava a alcançar profundezas da emoção que só os grandes atingem. Algo primitivo, quase infantil, mas burilado com técnica e esforço. Uma aura, uma presença, uma potência rara, que encontrou a síntese possível na figura do protagonista de O Padre e a Moça (de Joaquim Pedro de Andrade, 1966), o mais intimista dos filmes do Cinema Novo brasileiro – ao mesmo tempo delicado e forte, suave e contundente.
Foi seu primeiro longa-metragem, e em menos de meia década, recém completando 30 anos, ele já havia trabalhado com Walter Hugo Khouri (As Amorosas, 1967), Alberto Salvá (Como Vai, Vai Bem?, 1968), Roberto Santos (O Homem Nu, 1968) e Domingos Oliveira (Todas as Mulheres do Mundo, 1966; Edu, Coração de Ouro, 1968), além de ter encarnado os papéis de Macunaíma branco e mãe de Macunaíma na clássica adaptação da obra de Mário de Andrade dirigida por Joaquim Pedro de Andrade em 1969. Passear por sua filmografia é passear pela história do cinema brasileiro em alguns de seus momentos mais gloriosos – e de maior resiliência.
Do mesmo modo, foi ao nosso teatro mais perseguido (porque mais pungente nas respostas às demandas de seu tempo) que Paulo José emprestou rosto e corpo. A ditadura militar restringiu sua atuação, como a de gerações inteiras dos nossos mais talentosos artistas, mas na TV ele também encontrou a consagração a partir dos anos 1970, entre outros papéis como o Shazan de O Primeiro Amor (1972), que depois ganharia uma série ao lado do parceiro Xerife (Flávio Migliaccio): Shazan, Xerife & Cia (1972).
“Tudo o que tem em Paris tem em Lavras do Sul.” Esta frase, por sua vez, ele disse a Jorge Furtado, conforme relato do cineasta que muito o admirou – e o escalou para vários papéis, incluindo a narração de Ilha das Flores (1989), o filme gaúcho mais premiado e possivelmente o mais conhecido, da cidadezinha cortada pelo Camaquã à capital da França. “De fato”, seguiu o diretor no Facebook, “sua amada Lavras tem tudo o que é preciso para formar um cidadão e um artista: praça, rio, casas, igreja, biblioteca, restaurante, pessoas”. E Paulo José, arrematou Furtado, “foi um dos melhores seres humanos que conheci”.
O eterno guri de Lavras estava realmente destinado à História do cinema de seu Estado de origem: atuou ainda, entre outros, no brechtiano Anahy de las Misiones (Sérgio Silva, 1997), outra das produções mais icônicas já realizadas do Rio Grande do Sul.
Um clichê que ele confirmou reiteradamente: não há papéis menores para grandes atores. Vide Pequenas Histórias (Helvécio Ratton, 2007), A Festa da Menina Morta (Matheus Nachtergaele, 2008), O Palhaço (Selton Mello, 2011). Nos últimos anos, retornava, a cada pouco, em aparições que eram um misto de participação especial e homenagem, como se todos quisessem não apenas privar de sua companhia no set, mas abrilhantar o filme com sua presença.
Uma celebração de seu nome foi Todos os Paulos do Mundo (2017), documentário de Gustavo Ribeiro e Rodrigo Oliveira que compila cenas de seus 60 anos de carreira. Não que 90 minutos deem conta de seus grandes momentos. Mas ajudam a organizar sua memória, que agora, e cada vez mais, deve ser preservada.
“Espero que você esteja vendo o tanto de amor que brotou por você (desde a notícia de sua morte)”, escreveu Rodrigo Oliveira na mesma rede social. Nas palavras seguintes, o diretor que o homenageou chegou à epígrafe ideal: “O artista que você é está eternizado: é o maior trabalho de um ator brasileiro já feito”.