Por Noeli Tejera Lisbôa
Jornalista, mestre em Letras (UFRGS) com dissertação sobre Clarice Lispector. Está lançando o livro "Pontuação do Silêncio: uma Análise Discursiva da Escritura de Clarice Lispector (Ed. Pontes).
Gênero não me pega mais. Dessa forma Clarice Lispector sintetiza as inovações de sua escritura, nas quais tanto as definições de texto quanto as de gênero são colocadas em xeque. Rompendo com os limites do texto, trabalhando sem início e sem final definidos, pois iniciado por uma vírgula e terminado por dois pontos, como é o caso do romance Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, Clarice ultrapassa também a noção de gênero ao transpor trechos de textos de crônicas para romances e vice-versa; o que, numa obra, é um conto, de repente reaparece como crônica.
A novelística da autora é a expressão de maior relevância da crise de um gênero com as conotações culturais que uma crise tem, na opinião do crítico Benedito Nunes em O Drama da Linguagem: “Seu problema não é, contudo, o da demissão pura e simples da história. Para Clarice, a impossibilidade é de narrar qualquer coisa sem ao mesmo tempo narrar-se”.
A autora tece uma escritura que busca a aproximação do ser e, nessa busca, na qual a existência é o foco, os fatos perdem importância. Então, não há enredo ou uma história a contar; há a pulsação do ser, o indizível que ela encontra repetidas vezes no silêncio, no fora da linguagem. Mas, como ela mesma diz, para percebê-lo é preciso linguagem, pois é ali onde esta falha que há o indizível. Ou, como observa Olga de Sá em A Travessia do Oposto: “O diluído enredo que subsiste rarefeito em seus livros se dissolve, progressivamente, a favor da anotação de cada dia, cada hora, cada minuto que escorre”.
Ao pôr em xeque a capacidade de a palavra dizer, Clarice põe em xeque a própria textualização, porque é pela incoerência, pela incompletude, pela contradição que ela nos dá a multiplicidade do ser refletido e refratado no sujeito que diz. Desloca, desse modo, o foco do estudo literário para aquilo que Roland Barthes considera ser a essência da literatura: a linguagem.
O texto de Clarice nos remete para o que a análise do discurso denomina de “interdiscurso”, ou a rede complexa de já ditos, para pontos de um dizer anterior; nos remete ainda para o intertexto, uma vez que trechos de crônicas aparecem, mais adiante, em forma de contos ou fragmentos de romance; nos remete ainda para o silêncio, enquanto real do discurso. Além disso, seja na paragrafação, no uso das maiúsculas ou na pontuação, como as reticências inusitadas nos títulos de capítulos em Perto do Coração Selvagem: “O pai...”, “...A mãe...”, “...O banho...” etc.
Clarice rompe com a normatização gramatical, exigindo para a análise do funcionamento de seu texto que se mobilizem noções da análise do discurso, uma vez que o estritamente linguístico, ou a linearidade do texto, não dá conta dos sentidos ali postos. Ao interpelar a linguagem, ela interpela a própria consistência do discurso hegemônico, não no seu conteúdo, mas na sua forma.
Para Barthes, a literatura não pode ser pensada sem que se leve em conta o que ela é essencialmente: linguagem. A linguagem, diz ele, não preexiste à literatura. Ela é o ser da literatura. E, assim, Barthes considera que a literatura tem por função fazer a crítica da linguagem. É o espaço por excelência onde a linguagem pode ser questionada, a estrutura pode ser contestada e os sentidos, colocados em xeque.
É com essa estrutura que Clarice rompe, conforme deixa claro em Água Viva: “Sim, quero a palavra última que também tão primeira que já se confunde com a parte intangível do real. (...) Que mal porém tem eu me afastar da lógica? Estou lidando com a matéria-prima. Estou atrás do que fica atrás do pensamento. Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais”.
Viva Clarice
- Clarice Lispector nasceu em 10 de dezembro de 1920, na Ucrânia, tendo chegado ao Brasil com menos de dois anos. Até sua morte, em 1977, deixou uma vasta e aclamada obra composta por romances, contos, crônicas e livros infantis. Desde o ano passado, uma série de eventos, incluindo exposições, montagens teatrais e seminários, têm marcado seu centenário.
- Uma dessas homenagens é o encontro acadêmico em torno da obra de Clarice realizado pela UFRGS nesta semana. Saiba mais em ufrgs.br/encontro-clarice.
- Outra homenagem vem da PUCRS. Nas redes sociais e no seu canal de YouTube (youtube.com/user/pucrsonline), a universidade têm publicado, desde o mês passado, vídeos sobre a autora dentro do projeto o projeto Cem Anos de Clarice.
- A editora Rocco está relançando desde 2019 a sua obra completa com novas edições de todos os seus livros, acrescidas de conteúdos extras, como posfácios inéditos.
- Também pela Rocco, o livro Todas as Cartas (864 páginas, R$ 80, em média), maior compilação de missivas da autora, foi lançado em 2020. A editora criou uma página sobre a autora, com vídeos, podcasts e outros conteúdos: rocco.com.br/especial/claricelispector.
- Lançada originalmente em 1999, a biografia Eu Sou uma Pergunta (Rocco), de Teresa Montero, também deve ser relançada com acréscimos. Outro livro biográfico referencial sobre a autora é Clarice, de Benjamin Moser (Companhia das Letras, 2009).
- Autora do artigo ao lado, Noeli Tejera Lisbôa está lançando, neste 2020, A Pontuação do Silêncio: uma Análise Discursiva da Escritura de Clarice Lispector (Ed. Pontes, 214 páginas, R$ 42).
- As duas próximas adaptações cinematográficas de sua obra devem ser A Paixão Segundo G.H., de Luiz Fernando Carvalho, e Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres, de Marcela Lordy. O primeiro tinha estreia prevista para 2020, mas foi adiado.