Por Gustavo Melo Czekster
Escritor, doutor em Escrita Criativa
Para entender a obra do escritor congolês Alain Mabanckou, é essencial ter algo em mente: ele se considera mais poeta do que prosador, mais voltado para os mecanismos hipnotizantes do ritmo com que se conta uma história, ao invés de se preocupar com o burilamento formal de um texto literário. Não se quer dizer que é um texto impregnado de oralidade, mas uma pulsação rítmica que assumiu a forma de literatura. Tendo isso em mente, o leitor irá se entregar para uma obra que, mais do que ser lida, nasceu para ser escutada como se fosse uma música formada não por notas e compassos, mas pelo som único de cada palavra.
Pena que um escritor de obra tão fecunda – 12 romances, sete livros de poesia, sete de ensaios, dois infantojuvenis – tenha somente três publicados no Brasil, mas são uma eloquente demonstração da capacidade narrativa de Mabanckou. Em Memórias de Porco-espinho, ele revisita uma lenda africana, de que cada ser humano possui um duplo animal, para contar a jornada de um porco-espinho que, após a morte do homem ao qual estava associado, senta-se embaixo de um baobá e relata a sua vida, repleta de assassinatos, de perfídias e de muita filosofia, tudo isso entremeado com a riqueza cultural africana. Em Copo Quebrado, o autor mantém o foco em uma personagem, Copo Quebrado, professor e frequentador fiel do bar O Crédito Acabou, que, enquanto bebe, conta casos pitorescos ou tristes de inúmeras outras personagens e enfoca seus dramas, revisitando a história do país e a colonização francesa. Em Irmã Estrela, uma obra infantojuvenil, Mabanckou aborda a delicada história de um menino que, após passar inúmeras dificuldades no seu cotidiano no Congo, aprende com uma estrela como aceitar a morte.
Apesar de a quantidade de obras de Alain Mabanckou disponível no Brasil ser insuficiente para detectar os seus temas preferenciais, percebe-se o desejo de usar a via literária para tratar das situações política, econômica e social do Congo na atualidade, sem deixar de lado a tradição, os mitos e as grandes histórias que estão na nascente da noção de identidade nacional. É forte a presença da natureza na sua obra, não na forma estática de paisagem onde se desenrolam as cenas, mas como algo que afeta a construção moral e a visão de mundo da sociedade. A natureza não é distante, um elemento amorfo presente no país, mas está entranhada nos tipos humanos, acabando por influir nas suas condutas, decisões e relacionamentos. Quando esses elementos se juntam à observação implacável, irônica e às vezes piedosa dos homens e mulheres que compõem a sociedade congolesa, temos um escritor que usa a força da imaginação para nos remeter a tragédias e comédias que, mesmo se passando em um país africano, parecem estar acontecendo ao nosso redor, como se estivéssemos ouvindo uma fábula sem fim que se passa em um cenário mágico, juntando uma história à outra em um ritmo envolvente, ao melhor estilo de Scheherazade em As Mil e Uma Noites.
Algumas características interessantes do estilo de Mabanckou são a ausência de pontos finais, os capítulos curtos sem letras maiúsculas (só nomes próprios e locais) e a pontuação feita quase exclusivamente com vírgulas. Longe de parecer um experimentalismo com a linguagem, as escolhas do escritor congolês refletem-se na fluência quase irresistível do texto, que arrasta o leitor entre as páginas como se fosse o refluxo de águas à beira mar. No início de Copo Quebrado, o dono do bar O Crédito Acabou, Escargô Teimoso, pede para que o narrador conte em livro as histórias dos frequentadores do local, mas não será publicado, só para que ele leia. Perguntado sobre o motivo, diz: “Não queria que o bar desaparecesse um dia sem mais nem menos; acrescentou que as pessoas desse país não ligavam para a conservação da memória, que a época das histórias que a avó enferma contava tinha acabado, que a hora agora era a da escrita porque é o que fica”.
Na sua obra, Alain Mabanckou reforça uma das mais nobres funções da literatura: mostrar o quanto os mitos do passado continuam se renovando no interior dos seres humanos, pois somos todos vírgulas no decorrer da longa história humana, jamais pontos finais.
O Fronteiras 2020
- O escritor Alain Mabanckou participará do Fronteiras do Pensamento em 4 de novembro. A temporada 2020 do Fronteiras será em plataforma digital. A primeira conferência, de Andrew Solomon, será no dia 9 de setembro. Os demais participantes são Mia Couto (em 16/9), Jonathan Haidt (em 30/9), Paul Collier (7/10), Timothy Snyder (21/10), Fritjof Capra (18/11) e Isabela Figueiredo (9/12).
- As inscrições podem ser feitas com descontos que vão de 30% (valor total parcelado em 6x de R$ 161,00) a 50% (valor total parcelado em 6x de R$ 115). Confira os grupos de descontos em fronteiras.com.
- O Fronteiras do Pensamento é apresentado por Braskem, com patrocínio Unimed Porto Alegre, Hospital Moinhos de Vento e Gerdau, empresa parceira Unicred RS, universidade parceira UFRGS, apoio educacional Colégio JPSul e promoção Grupo RBS.