Há algum tempo, Sergio Faraco só concede entrevistas por e-mail. Diz que ouve mal.
– Seria uma sucessão de "como?", "hein?", "não entendi", "pode repetir?" – ele esquiva-se de falar por telefone ou pessoalmente com a reportagem, em mensagem enviada por correio eletrônico.
A situação que se configura vem a calhar para quem domina como poucos a arte da escrita. Veja por si próprio a seguir, nas respostas às 10 questões que GaúchaZH enviou, com o objetivo de registrar os 80 anos desse mestre da literatura brasileira.
Nascido em Alegrete, na fronteira oeste gaúcha, em 25 de julho de 1940, Faraco é autor de três best-sellers: Contos Completos, primeira edição em 1995, terceira e mais recente em 2011, com a última reimpressão datada de 2018; Dançar Tango em Porto Alegre, 1998, também de contos; e o memorialístico Lágrimas na Chuva, 2002. Entretanto, suas histórias curtas arrebatadoras se espraiam por vários livros, quase todos, como ele informa em um arquivo de Word que contém dados biográficos minuciosos, esgotados. A saber, entre outros, Noite de Matar um Homem (livro de 1986 reeditado em 2008), A Dama do Bar Nevada (1987-2011), Rondas de Escárnio e Loucura (2000), quase todos pela L&PM Editores.
A estreia foi em 1974, com Idolatria, quando já havia trabalhado como servidor público do Poder Judiciário em Blumenau (SC) e ido e voltado da velha União Soviética, onde estudou Ciências Sociais. Formado em Direito, produziu muito nas décadas seguintes, incluindo crônicas e textos em alguns outros gêneros, contemplando temas às vezes inusitados – do bilhar (Snooker: Tudo sobre a Sinuca, com Paulo Dirceu Dias, 2005) aos carros (O Automóvel: Prazer em Conhecê-lo, com Hugo Almeida, 2001), passando por um dos mais célebres naufrágios de que se tem notícia (O Crepúsculo da Arrogância: RMS Titanic Minuto a Minuto, 2006).
Ficção resolveu que não vai mais escrever, processo que detalha na conversa abaixo, o que não significa, necessariamente, que não voltará a publicar esse tipo de texto: Faraco costuma retomar velhos escritos que foram para a gaveta e lá ficaram por anos, graças ao perfeccionismo que se tornou outra de suas características mais conhecidas.
– O amanhã sempre é um mistério – ele deixa os leitores esperançosos, na última frase da resposta sobre a possibilidade de reencontrar a inspiração para a ficção.
A verdade é que há outros estímulos ao escritor. Faraco gosta de estar em casa e de dedicar-se aos afazeres domésticos, o que inclui subir no telhado da residência em que vive, na zona sul de Porto Alegre – quando, como ele relata, consegue convencer a mulher, Ana Cybele, a deixá-lo realizar esse tipo de tarefa. Com ela e com a família, que inclui os três filhos, Angélica, Bianca e Bruno, vai celebrar a efeméride do sábado que vem. Queria estar com mais gente, "o que, em meio à pandemia, não é possível", lamenta. Mas considera esta entrevista, acompanhada deste texto memorialístico inédito, uma boa lembrança:
– Vamos comemorar no caderno DOC.
Como tem sido o seu isolamento? E como está sendo chegar aos 80 anos nessa condição?
Se fosse apenas o isolamento, seria fácil, é o meu dia a dia há muitos anos. Mas nem tranquilo me sinto, com essa pandemia que infelicita a humanidade e, tão intensamente, o nosso país. Impossível não pensar nessas famílias que perdem tantas pessoas amadas. Tenho escrito muito pouco e nem consigo ler. O que tenho feito é trabalho doméstico. Faço todos os serviços que uma casa requer, inclusive no telhado, embora seja difícil convencer minha mulher a me deixar subir. Quando estou concentrado nessas atividades, o dia passa mais depressa, penso menos e até posso dormir melhor.
A solidão, as fragilidades e demais características humanas despertadas por essa condição sempre o interessaram do ponto de vista literário, para delinear certos personagens, por exemplo. A quarentena de algum modo poderia servir de inspiração?
São os críticos, os ensaístas e talvez os leitores que veem em meus contos esses temas e também outros, como as dificuldades de adaptação dos indivíduos do campo e das áreas justafluviais de fronteira às novas ordens econômico-culturais que o progresso impõe. É o que se diz e posso supor que seja assim, mas quando vou escrever, ou enquanto escrevo, não delibero, e se o fizesse teria muitos problemas e não convenceria ninguém. Escrevo histórias e trato de corresponder ao que elas exigem, cada história tem sua própria história. Tanto é que nem sempre sei como ela vai avançar. E escrevo para descobrir. Além disso, na pandemia a preocupação é mais aguda do que qualquer inspiração.
O senhor já declarou que não quer mais escrever ficção. Não cogita reconsiderar a partir de alguma nova inspiração?
Comentei que não tornaria a escrever ficção em 1995, numa entrevista ao Jerônimo Teixeira, em Zero Hora. Quando me entrevistam e perguntam sobre isso, confirmo, e às vezes o titulador da matéria coloca ali: “Faraco anuncia...”. Não é bem assim. Foi um comentário feito há 25 anos. Mas a resposta é a mesma, não acredito que possa escrever novos contos. Traduzi dezenas de livros, e quando um escritor traduz e quer fazer um bom trabalho, ele tenta assumir o modo de narrar do autor traduzido. Isso me fez mal, pouco a pouco fui perdendo meus arquétipos. Costumo dar o exemplo do trompetista que se dedica ao piano: ele vai perder a embocadura do trompete. É o que penso hoje. O amanhã sempre é um mistério.
Não acredito que possa escrever novos contos. Traduzi dezenas de livros, e quando um escritor traduz e quer fazer um bom trabalho, ele tenta assumir o modo de narrar do autor traduzido. Isso me fez mal, pouco a pouco fui perdendo meus arquétipos.
Parte do que o senhor escreve é de algum modo inspirado na realidade, certo? No sentido de que tudo o que um escritor produz tem alguma inspiração no real. O que costuma inspirá-lo? E por que não há mais aspectos da realidade que possam inspirá-lo a produzir ficção?
O escritor escreve sobre o que conhece ou o que, de algum modo, fez ou faz parte de sua vida. Mas é preciso levar em conta o que é a vida de um escritor na sua relação com a literatura. Nesse sentido, fazem parte dela o que ele sente, o que ele vê, o que ele ouve, o que ele lê, o que ele lembra, pode ser até um cheiro que ele nota e mesmo um título que lhe ocorre e parece ter um significado – são outras espécies de vida que se oferecem. E uma parte sua as absorve. O tabuleiro do escritor é um crisol de experiências plurais. Com o tempo e a idade, ele aprende a esfarinhar essas vidas que sentiu em comunhão, emassando-as com a sua e uma pitada de fermento. Levedando, ao forno. A mim não me faltam histórias, o que me falta hoje, como disse, é saber e querer escrevê-las.
Dado que o senhor engavetou muitos de seus escritos sem nunca publicá-los, e que já aconteceu de retomar e concluir textos antigos após muitos anos, não pode ocorrer de voltar a algo para uma nova publicação?
Sim, já ocorreu. Na terceira edição dos Contos Completos, em 2011, aparecem quatro ou cinco contos que até então estavam em repouso, considerava-os sem valor. Como pude retomá-los, melhorar o que já possuía um arcabouço, e como não conseguia alterar mais nada, concluí que alcançara o meu limite e que, afinal, aquilo era eu mesmo, com minhas raras qualidades e meus muitos defeitos. Ou seja, eram aproveitáveis. Dois deles também estão no começo da segunda edição de Noite de Matar um Homem (2008). Tenho mais alguns, escritos nos anos 1980 e 90, que foram descartados e continuam inéditos. Pode ser que publique um ou outro mais adiante, mas teria de reescrevê-los. A ver se consigo.
Por que o senhor é tão exigente com o que escreve?
Ser exigente é uma obrigação do escritor. Quem escolhe a linha de menor resistência acaba fracassando, não atravessa a ponte e não encontra o sujeito que espera na outra margem, o leitor. Morre afogado. Quando comento a respeito, sempre me lembro de que há uma distância entre a expressão sentimental e a expressão artística, no caso literária. Quando o texto é apenas a expressão de teu sentimento, ele pode te emocionar, mas não vai emocionar quem te lê. Para que isso aconteça, tens de buscar o meio adequado para teu transporte ao outro lado da ponte, e este meio é a expressão literária. Até então, é teu único objetivo, tão terminante que, paradoxalmente, precisas ignorar quem te espera, mas não confundir essa conditio sine qua non com arte pela arte, com esteticismo. A literatura é um meio, não um fim. Mario Quintana explicou de outra forma esse maravilhoso e difícil processo. Ele disse que trabalhava seus poemas para que o espontâneo se tornasse natural.
Apontado como mestre da narrativa curta, como o senhor, Sérgio Sant’Anna (1941-2020) dizia ter estimados 3 mil leitores – número que considerava satisfatório. O senhor já declarou não pensar nos leitores enquanto escreve, mas, nestes tempos de redes sociais e convívio virtual, deve receber retornos deles. Sua relação com o público não mudou?
Não. Enquanto escrevo, o leitor não existe, está em órbitas distantes de minha translação. Se me preocupasse com ele, estaria permitindo a presença de alguém que só deve aparecer no final do meu trabalho. O escritor, quero dizer o ficcionista, não escreve conforme interesses alheios à história que imaginou ou para adequar-se a expectativas, como aconteceu com parte da literatura russa durante o regime soviético. Ele presta contas a um único leitor: ele mesmo. Publicado o livro, eis o momento do leitor, e sei apreciar a opinião dele, posso até me sentir feliz ao ouvi-la, se acaso for favorável. E sigo meu caminho, não é? Nos meus livros, sempre estou inteiro, tão cabal quanto consente a minha capacidade, e mais não posso, nem menos, de modo que as críticas, voluptuárias ou não, jamais me tornariam um escritor diferente do que sou. Nem melhor e nem pior. Foi isso o que sempre disse. Ou, quem sabe, o que sempre quis dizer. Com relação ao número de leitores que Sant’Anna estimava, acho que ele tinha razão, se quis indicar a média da edição de um livro. As minhas edições, geralmente, são de 2 mil exemplares, e nem sempre se esgotam. Há as exceções: Lágrimas na Chuva, Contos Completos e Dançar Tango em Porto Alegre tiveram milhares de exemplares vendidos.
Ser exigente é uma obrigação do escritor. Quem escolhe a linha de menor resistência acaba fracassando, não atravessa a ponte e não encontra o sujeito que espera na outra margem, o leitor. Morre afogado.
Entre projetos novos aos quais gostaria de se dedicar, o senhor já citou uma continuação de Lágrimas na Chuva. Esse projeto segue de pé? O que tem escrito?
Venho preparando, sem pressa, um novo livro de crônicas e artigos. Está quase pronto, mas não penso em publicar tão cedo, ainda não se sabe o que acontecerá com as editoras brasileiras após a quarentena. Espero que sobrevivam, assim como as livrarias. A continuação do Lágrimas na Chuva está descartada. Cheguei a escrever 11 capítulos, mas eram insatisfatórios e, por mais que tentasse, não consegui melhorá-los. Ao contrário, creio que os piorei. Só devo considerar publicável aquilo que me convence. (Clique aqui para ler o texto memorialístico Diário Trivial Sob a Sombra, que surgiu como um capítulo da continuação de Lágrimas na Chuva e que Faraco disponibilizou aos leitores de GZH.)
O que o senhor tem lido nestes tempos e o que lhe tem chamado a atenção?
Tenho lido menos do que em outros anos. Sempre li mais do que minha mulher, que é mais ocupada do que eu, mas ultimamente houve uma inversão. No último ano, ela leu dezenas de livros, ao passo que eu, se li uma dúzia, foi muito. Minha especialidade na ficção sempre foi o conto, mas leio mais romances do que contos, e muito mais história antiga do que romances. Para escrever um artigo sobre os Románov, li seis ou sete livros sobre eles. No início do ano li biografias de Raspútin, Trótski e Stálin.
O senhor já escreveu um livro sobre o Titanic, é conhecido seu apreço por carros e pela sinuca. Como estão seus hobbies neste período?
De vez em quando, certos assuntos me interessam ao ponto de me dominar, e o que mais me estimula no desenvolvimento do projeto é a possibilidade de compartilhar o que aprendi. No ano passado voltei a refletir sobre um tema que me fascinou na mocidade, o caso da menina Aída Curi no Rio de Janeiro, em 1958. Reuni a bibliografia possível, inclusive os livros do irmão dela, monsenhor Maurício Curi, e sobretudo o processo criminal completo. A parte que já li alterou bastante a opinião que sempre tive a respeito do que ocorreu no terraço do Edifício Rio Nobre, em Copacabana. Seria um grande projeto, mas na minha idade dificilmente conseguiria concluí-lo. Não o abandonei, mas só vou decidir o que fazer após o fim da pandemia, se é que ela vai ter um fim.