Por Sergio Faraco
Escritor
Em meados dos anos 1970, era diretora do Instituto Estadual do Livro, em Porto Alegre, a professora Lígia Averbuck, cuja atuação vinha consolidando o prestígio da literatura rio-grandense em penoso capítulo da história do país – terminava o governo de um general e começava o de outro, em que a perseguição aos opositores do regime, nos primeiros anos, seria agravada com os assassinatos de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho em São Paulo e a integração do Brasil na Operação Condor. Entre outros programas de notória prestância, ela criara um ciclo de palestras de escritores gaúchos em escolas do Estado, tão proveitoso que todavia subsiste.
Eu já publicara um volume de contos e, pela segunda vez, fui convidado a participar do programa: faria uma palestra para alunos de segundo grau no Colégio São José, em Garibaldi, que previamente leriam o livro.
Primeiro dia
Uma semana antes, a diretora do instituto me comunicou que a palestra fora cancelada. Não era a minha estreia em cancelamentos, mas eu continuava me surpreendendo. Quem dera a ordem? E por quê? Seria uma reprise do que acontecera no ano anterior, em escolas da Fronteira-Oeste? Em Itaqui, pediram ao instituto que eu fosse substituído. Em Alegrete, minha terra, o episódio tinha sido mais constrangedor. Estava na cidade a passeio e uma professora solicitou que fosse conversar com seus alunos para estimulá-los à leitura. Concordei, mas não houve essa conversa.
Na hora combinada, a diretora da escola estava à porta do edifício e bloqueou minha entrada. Nas duas cidades, uma barricada moral: eu era autor de histórias pornográficas. Aliás, as mesmas histórias incluídas mais tarde na coletânea Dançar Tango em Porto Alegre, que em 1999 receberia o Prêmio de Ficção da Academia Brasileira de Letras, e em 2014, 2015 e 2016 seria indicada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) como leitura obrigatória para os vestibulandos.
Mas estávamos em 1976 e então era possível que eu estivesse em face à versão garibaldense de meu satanismo – o São José era um educandário religioso –, e insisti com Lígia Averbuck para que a confirmasse. Ela resistiu, alegando exigência de sigilo, mas acabou por admitir que não era por causa dos contos, não era uma deliberação do colégio, sequer do Instituto do Livro e sim da Subsecretaria Estadual de Cultura, coagida pelo Serviço Nacional de Informações, em virtude de minha antiga militância no PCB de Santa Catarina e de ter vivido na União Soviética.
Não acreditei.
Em minha lembrança, estava presente algo que ocorrera em Alegrete, em março de 1965, sete dias após meu retorno de Moscou. Eu viajaria para Porto Alegre, a trabalho, e meu pai me levou à estação ferroviária. Enquanto esperávamos o trem de Uruguaiana, ele foi abordado por um capitão QAO reformado, frequentador dos recintos de carteio do Clube Cassino e conhecido por seu apedeutismo. Conversaram em voz baixa. Depois meu pai contou que o oficial era um soi-disant agente do SNI e dissera que, em consideração à nossa família, não relataria meu suspeito deslocamento para a Capital. Conversa fiada, segundo meu pai, e os registros militares seriam uma calamidade se fossem depender de informantes que tais. Vinha dali minha desconfiança de que, naquela conjuntura, pudesse haver dois tipos de agentes do SNI, os que de fato o eram e os que representavam sê-lo para inspirar temor e, pelo temor, ascender na escala social ou satisfazer outras e obscuras ambições pessoais.
E não acreditei também porque, ainda em 1965, comparecera a dois quartéis para prestar depoimento, no 6º Regimento de Cavalaria, em Alegrete, e no 23º Regimento de Infantaria, em Blumenau, sendo bem tratado em ambos, devo convir. Estivera preso na sede da Interpol, um sobrado na Rua Duque de Caxias, nº 1.705 – mais tarde demolido para dar lugar a um edifício –, aos cuidados, por assim dizer, do Comissário Aristotelino Souza, hoje nome de rua em Porto Alegre. Já não militava em partidos políticos. Embora persistisse no país o regime de força, que novo interesse teriam os militares por minha pessoa, a ponto de impedir que falasse a estudantes? Não duvidava de Lígia Averbuck, minha amiga, mas da cadeia de circunstâncias que ligava o SNI ao programa do instituto.
E, para seu desgosto – ela receava que um assunto espinhoso lhe turvasse a gestão –, avisei que iria procurar o Subsecretário de Cultura, para perguntar o que causara o veto.
Segundo dia
Tive de esperar meia-tarde na antecâmara do gabinete do subsecretário, num edifício de esquina da Avenida Júlio de Castilhos. Ele me recebeu já no fim do expediente. Reconheceu que suprimira meu nome, mas não o fizera a seu talante e sim como me relatara, indevidamente, a diretora do instituto. A justificativa, que eu aceitaria de bom grado se a coação de um órgão militar realmente existisse, era a de que prejudicava a mim para não prejudicar o instituto. Paulo Amorim, hoje nome de uma cinemateca em Porto Alegre, era um homem educado, mas nossa despedida não foi amistosa depois que ouviu de mim que sua explicação não suspendia a palestra, pois o Colégio São José era particular e até então não se opusera. De resto, tinha dúvidas sobre as notícias que me davam da tal coação e iria ao SNI para saber se tinham fundamento.
Terceiro dia
Foi o que fiz, numa segunda-feira, ou tentei fazer, não sabia onde funcionava o SNI e supus que fosse no QG do III Exército, na Rua dos Andradas. Não era. O sargento, na portaria, negou-se a indicar o endereço certo, não gostou de minha insistência e eu já estava achando que aquilo ia terminar muito mal para mim quando, casualmente, passou pela portaria um tenente que eu conhecia, natural de Alegrete, cujo nome, infelizmente, não estou autorizado a citar. Ele disse que o SNI ocupava o quarto andar do edifício da Polícia Federal, na Avenida Paraná, e que a inteligência militar em serviço no QG era a 2ª Seção do III Exército. Não era o que buscava, mas estando tão perto, pedi ao conterrâneo que me acompanhasse até lá. Num piso superior, ele me apresentou a um major, e este, após me ouvir e, imagino, consultar algum arquivo, garantiu que ninguém dera instruções a quem quer que fosse para obstar meus deslocamentos ou participação em iniciativas culturais.
Sem querer, eu conseguira uma resposta.
Faltava outra.
Quarto dia
Na Avenida Paraná, num vestíbulo com duas poltronas, fui recebido por um funcionário civil. Guardei-lhe o nome, Luiz Antônio Matzenbacher. Depois veio um oficial e também não esqueci seu nome, Coronel Miron. Ele foi categórico: não era da competência do SNI vetar procedimentos e se alguém os vetara em nome da agência, esse alguém mentira.
Quinto dia
Já na véspera da palestra, quando preveni a diretora do instituto que iria a Garibaldi, ela ponderou que, a despeito das novidades, o veto era uma ordem superior e tinha de cumpri-la. Mas que me despreocupasse, os alunos continuariam bem-servidos: ela pedira ao professor Antônio Hohlfeldt que fosse ao Colégio São José falar sobre minha ficção. Respondi que entendia suas razões e me sentia honrado com a escolha do substituto, tão meu amigo quanto ela, mas que naquele instante mesmo ia pegar o carro para ir a Garibaldi e informar à direção do colégio que, se assim o desejasse, eu lá estaria no dia seguinte.
E foi o que fiz.
Em Garibaldi, a uma delicada freirinha, Irmã Graciosa, fiz um resumo de minha pequena contenda, uma trivialidade, afinal, se comparada a outras vivências que tivera naqueles anos sombrios. Ela me conduziu ao auditório. Das paredes, pendiam faixas com frases copiadas de meu livro e, no palco, fora montado um rude caminhão para que os alunos representassem o conto Idolatria, em que um tímido menino viaja com seu pai.
– E eu posso vir – perguntei, hesitante.
– E como o senhor poderia não vir? – ela reclamou, acrescentando que governo algum decidia por ela e que, se eu tinha receio de ser impedido de voltar a Garibaldi, ficasse em Garibaldi e dormisse no colégio.
– Obrigado, não é preciso – eu disse –, eu venho amanhã.
Sexto dia
E fui.