Por Reginaldo Pujol Filho
Autor de “Não, Não É Bem Isso” (Ed. Dublinense, 2019)
Já havíamos falado do Fluminense (ele não andava muito otimista) e do Grêmio, que vinha “jogando como o Barcelona de antigamente”, e voltamos à literatura. Sérgio Sant’Anna (1940-2020), sentado na sua poltrona, me olhou e disse uma das coisas mais bonitas que já ouvi de um escritor: “Sabe, Reginaldo, acho que sei quantos leitores eu tenho: uns 3 mil”. Era julho de 2017.
Estava na casa de um monstro da literatura. Ele tinha feito uma pausa, parecia melancólica, e eu prestes a lamentar a profunda injustiça de sua obra ter só 3 mil leitores. Mas ele sorriu: “Estou satisfeito. Já pensou, 3 mil pessoas entenderem o que você faz?”. Queria e quero crer que estava errado. Sérgio é tão grande. Mas, no país do talco no pum do palhaço, não é impossível que estivesse certo.
Ao longo de um dia tão doído como foi o 10 de maio em que ele morreu, pensei em Amílcar Bettega, Gustavo Pacheco, André Nigri, Sérgio Rodrigues e tantos que não conheço, família de escritores que Sérgio recebeu em casa, leu livros, trocou e-mails incentivadores e amigos. O privilégio da breve amizade, embora privilégio, não diz que sou especial. Especial era, é Sergio. É comum escritores experientes dizerem que cada vez mais releem livros. Sérgio relia. Falava com delicadeza e satisfação sobre Clarice. Mas lia. Lia os novos, se abria, divulgava os jovens com entusiasmo. Sérgio, que cara.
Na verdade, desde quando li sobre sua internação, foi difícil imaginar outro fim. Era tão frágil. Ao menos desde que o visitei. Conviver, mesmo que por e-mail, com ele era de algum modo lidar com uma perda que chegaria cedo ou tarde. Mas também era negar isso pela força da sua escrita e pelo carinho, amor eu diria, que despertava transcendendo sua obra já tão sinônimo de transcendência. Amor por uma espécie de avô ou parente ainda não catalogado. Ternura por sua simplicidade ao vibrar com um conto novo mais de 50 anos depois do primeiro livro, ao imaginar a recepção de um livro, ao frustrar-se com a recepção de um livro.
Como quem perde um parente e se vê obrigado a lidar com suas coisas, passei a remexer seus livros. Curioso – e infantil da minha parte – como tantos textos trazem uma sensação de prenúncio. Mas não há nada de místico na sua escrita – embora haja de mistério, revelação, insondável. Há, sim, um duelo antigo com a morte. Talvez consciência sobre a própria mortalidade e de tudo o que, livro a livro, ganhou consistência. As obras mais recentes parecem tomadas de pequenos testamentos.
Gonçalo M. Tavares diz que devemos escrever – e viver – lembrando que somos mortais. Sérgio, cada vez mais, parecia escrever assim. Após os 60 anos, com Jabutis e obra reunida, escrevia mais e sempre se desafiando. Dez dias antes da internação, publicou um conto precioso na Folha de S.Paulo. Contou-me que sairia, que achava “inventivo”, “ficaria feliz se você lesse”. Li ontem, meu caro Sérgio. Deixei para ler com calma. Li com carinho e um aperto no peito. E a tristeza de não te escrever sobre ele. A singeleza de avisar que um texto sairia, de vibrar com um retorno, lembra uma autodefinição sua:
– Sou um experimental, mas que cuida do leitor.
Generoso, quase sempre sugeria leituras: Evandro Affonso Ferreira, Padura, Lucia Berlin. De uma delicadeza assustadora, por mais apressada que fosse a mensagem, por mais que o tema fosse “nossa vergonhosa República, vivendo de novo um regime militar, só disfarçado para os ingênuos”, sempre terminava perguntando pelo meu livro ou se estava conseguindo escrever. Sua paixão pela escrita: outra lição que me dava sem saber. No início do isolamento, me vi sem conseguir escrever. E Sérgio me disse: “Acho o mais importante isso, gostar do que estamos escrevendo e então os leitores vêm naturalmente. Espero que você também consiga trabalhar nesses tempos de peste. Isso nos salva de alguma forma”. Falava do bem que fazia para seu humor escrever uma “novelinha de 78 páginas”, “que me agrada muito”. Tão bonito o entusiasmo.
Uma justa homenagem ao ídolo que a morte não vai nos tirar seria escrever com força, sem medo, enfrentando-se, como ele era um especialista em fazer. Tantas lições de amor à literatura (quantos contos trazem a palavra “conto” no título e um enredo que reflete sobre o existir? Vida e literatura, no grau mais sofisticado, nunca se separaram no seu modo de estar no mundo).
Não sei como foi o dia da internação. Quero imaginar que estava no meio de um conto, que disse que estava escrevendo. Acho que gostaria de ir assim, escrevendo, em processo, tentando mais uma vez, como no seu Cenários. Sem a sensação de um ponto final. Mas também tenho certeza de que ser vitimado pela doença que a cada dia associa-se mais a esse governo que tanto o abismava deve ter sido violento. Morrer não é errado, faz parte da vida. Mas às vezes parece tão errado.
Foram menos de três anos desde o encontro no Rio. A saudade vai doer, mas vai ser boa. Melhor que não tê-la. Entre tantos gestos generosos do Sérgio, eis o maior: ter me permitido conhecê-lo.