É um curta-metragem de horror. O protagonista é o funcionário de um pequeno cinema. Durante um turno solitário de trabalho, ele encontra um rolo de filme misteriosamente escondido. Nele, o alerta para que a película não seja rodada. Ignorando a mensagem, o rapaz assiste a um ritual satânico conduzido por uma entidade vestida de vermelho e acompanhada de duas mulheres peladas.
Vendo-se magicamente projetado na tela e assustado ao notar que será o próximo sacrificado, ele tapa os olhos, de modo que a entidade, uma anciã de longos cabelos brancos, sussurra em seu ouvido.
– Não feche os olhos. É apenas um filme – diz a mulher, em francês.
Ela é Aida Wailer Ferrás, hoje com 86 anos, considerada a maior cinéfila de Porto Alegre e a frequentadora mais assídua dos cinemas de rua da cidade. Professora aposentada de Letras, Aida encarou 10 horas de filmagens que se iniciaram em uma noite de sexta-feira 13, em 2015, e se estenderam pela madrugada, em um set repleto de objetos de látex simulando vísceras, sangue artificial e jovens com os seios à mostra.
Deu-se por vencida às cinco da manhã, pegou sua bengala, despediu-se da equipe e rumou para a parada de ônibus mais próxima.
O convite para sair do lugar de espectadora e experimentar o protagonismo surgiu de outro aficionado. Na época trabalhando na bilheteria da Sala P.F. Gastal, na Usina do Gasômetro, na Capital, Cristian Verardi sonhava dirigir um curta. Criou uma personagem para uma senhorinha que comparecia a quase todas as sessões. A ele, pareceu que Aida se encaixava no perfil de uma Dama de Vermelho que habita um cinema e ali conduz uma cerimônia diabólica.
– Aida é uma entidade dos cinemas de Porto Alegre. Tu vai numa sala de cinema e encontra ela lá. É meio espiritual – define Verardi, que também é crítico.
A impressão de que Aida é onipresente e está em todos os cinemas o tempo inteiro soa como brincadeira, mas bilheteiros, operadores, programadores e demais funcionários de outras salas têm a mesma sensação: na Cinemateca Capitólio, na Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ), na Sala Redenção ou no CineBancários, todos dizem que Aida está sempre lá.
– Ela tem um clone – brinca Andres Costa, projecionista da Capitólio.
– Quando a Aida não aparece, a gente fica perguntando onde ela está – ri Madalena John, há 25 anos vendendo ingressos na bilheteria da Sala Paulo Amorim, na CCMQ.
A fixação remonta aos primeiros anos de vida. Aida tinha apenas dois anos quando se mudou com a família para Quaraí, na Froteira Oeste, onde o pai, militar, fora recrutado para se juntar à expansão da linha férrea executada pelo Exército. Para espantar o tédio da cidade pequena, a escola em que estudavam os filhos dos militares organizava sessões de cinema quase todos os dias. Foi diante de uma tela improvisada que Aida viu Charlie Chaplin arrancar suspiros e risadas pela primeira vez.
Retornando a Porto Alegre no fim dos anos 1930, Aida viu a efervescência gerada pelas filas gigantescas que se formavam em frente às salas do Centro, como o Capitólio, na Demétrio Ribeiro, e o Imperial, na Rua da Praia. O mundo vivia a eclosão da Segunda Guerra e um novo tipo de adoração: os astros da Era de Ouro de Hollywood. Nesse frisson, Aida sonhava ter os cachinhos iguais aos da estrela mirim Shirley Temple.
Nos anos 1960, estudante de Letras da UFRGS, acompanhou a mudança provocada pela Nouvelle Vague frequentando as sessões do Cine Rex, responsável pelos “filmes de arte” na Rua dos Andradas. Mais tarde, ao ganhar uma bolsa para estudar francês na Sorbonne, teve o privilégio de sentar-se nas poltronas da Cinemateca Francesa, frequentada por intelectuais de Paris e local onde assistiu a filmes de Pasolini e Antonioni.
Meus cabelos brancos e minha bengala são a maior glória da minha vida. Digo o que quero e posso passar por louca, por rabugenta, não me interessa. Estou no cinema, vamos respeitar!
Também presenciou a tecnologia rudimentar do século passado, quando as exibições do Clube de Cinema de Porto Alegre, do qual era filiada, demoravam a começar por conta do atraso dos rolos de filmes, que chegavam de avião à cidade conforme a encomenda dos sócios.
É uma série de fatos, filmes e lugares que contam tanto a história do cinema quanto a vida de Aida, mas cujos detalhes começam a lhe escapar. Toda vez que fala sobre um ou outro filme, ou que alguém quer saber o nome do ator ou do diretor, nota-se que Aida faz um esforço de memória. Fica em dúvida.
– Será que eu vi? – pergunta-se.
Nesses momentos, recorre a um velho caderno cujas páginas começam a descolar do miolo. É ali que toma nota de todos os títulos e salas que já prestigiou. Os rabiscos provam que viu de tudo. De todos os gêneros. Hamlet, primeiro filme sonoro baseado na peça de Shakespeare, foi em junho de 1949. “Notável”, registrou sobre o filme de Laurence Olivier. Em setembro do mesmo ano, viu A Bela e a Fera, de Jean Cocteau. “Formidável”, escreveu sobre a obra.
O caderno também revela preferências. O Cine Avenida, na João Pessoa com a Venâncio Aires, era muito frequentado. Ali assistiu a Interlúdio, filme de Hitchcock com Cary Grant e Ingrid Bergman, em 1948, dois anos após o lançamento oficial. Pulam-se algumas linhas e eis Veludo Azul, noir de David Lynch com Isabella Rossellini, visto em 1986. Assistiu até a Três Homens e Um Bebê, comédia que se tornaria um clássico da Sessão da Tarde.
– Sabe o livro Mil e Um Filmes para Ver Antes de Morrer? O meu livro vai ter 10 mil – envaidece-se.
Há de tudo mesmo no velho caderno, mas é difícil enxergar uma só linha dedicada a uma sessão em cinema de shopping ou mesmo na televisão. Aida detesta a impessoalidade dos shoppings e se recusa a pagar o preço salgado das entradas. Para ela, cinema é um hábito que envolve contato com as pessoas, a troca de opiniões quando a história termina, o passeio pelas ruas. Tudo isso ela encontra nos cinemas do Centro, além do valor mais barato dos ingressos.
Outra mania diz respeito à etiqueta durante as sessões. Ela se irrita com o barulho das bocas ruminando comida e com os espaçosos que estendem os pés nas poltronas da frente. Não suporta gente mal comportada.
– Tem uns idiotas que ficam olhando celular, comendo, fazendo barulho. Só falta descascar amendoim. Se o filme é silencioso e fica aquele “crunch crunch crunch”, eu chamo a atenção. Falo “psiu, psiu, dá pra parar de conversar?”. Ou então: “Se vocês querem conversar, tem um barzinho ali, tá?”. Não falam nada, porque eu sou uma velha. Meus cabelos brancos e minha bengala são a maior glória da minha vida. Digo o que quero, na hora em que quero, e posso passar por louca, por rabugenta, não me interessa. Estou no cinema, vamos respeitar!
Os arroubos são frequentes e podem se dirigir tanto ao barulho quanto aos problemas na projeção, prova de que não assiste filmes à toa. Quem trabalha nos cinemas parece não se incomodar. Caso de Bia Barcellos, responsável pela programação do CineBancários, que sente um alívio quando vê Aida cruzar a porta com sua bengala.
– Toda vez que estou insegura a respeito do filme que escolhi e vejo a Aida chegar para a sessão, fico mais tranquila. Ela é um atestado de qualidade – afirma.
O alto nível de exigência rendeu-lhe fama e até uma honrosa alcunha.
– Brinco que a Aida é a grande dama da cinefilia local. Participa dos debates, enfrenta discussões com os críticos. É culta. Uma espectadora sofisticada – diz Marcus Mello, assessor do Capitólio.
Há quem não entenda tamanha dedicação. Nem Aida sabe explicar. Talvez seja um hábito derivado da falta de amigas na adolescência, solidão criada pela aversão a paparicos sobre vestidos e namorados, somada à falta de dinheiro para comer banana split nas sorveterias. A ela restava pegar um cineminha gratuito, mais comum nas segundas-feiras.
Passatempo que, sozinha e sem filhos aos 86 anos, tornou-se rotina. Só não consegue mais acompanhar tantas sessões como antigamente.
– Vejo muito filme. Chego a confundir às vezes. E, às vezes, saio do cinema e penso: “Bah, como terminou esse aí?”. É que terminou o filme e eu dormi no final. Assim como não vi o começo. Por isso estou indo só em duas sessões seguidas agora. Cansa os olhos.
Sua devoção foi reconhecida no último dia 14, quando foi homenageada pela Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (Accirs). Em uma sessão quase lotada do Capitólio, ela recebeu o Prêmio Luiz César Cozzatti – Destaque Gaúcho da temporada, que é concedido desde a fundação da associação, em 2008, e que, em 2019, foi entregue pela primeira vez a uma personalidade e não a um filme, um projeto ou uma entidade ligada ao cinema.
Ao receber a honraria das mãos de Cristian Verardi, o homem que a projetou na tela, Aida foi assertiva.
– Eu mereço esse prêmio mesmo – disse, arrancando risos dos presentes.
Dias antes, ela havia confessado à reportagem a vontade de ser famosa. Por isso aceitou o papel de entidade maligna no curta de Verardi, apesar das horas de gravação e de ser uma história de horror, único gênero do qual não gosta:
– Eu quero morrer como a Elis Regina: “Agora, eu sou uma estrela”. Depois que tu é uma estrela, tu pode morrer tranquila.
Sonho de quem passou oito décadas testemunhando o brilho de astros de todas as gerações.