Entrevistar Alceu Valença é um desafio. Em mais de uma hora de conversa por telefone, o músico pernambucano demonstrou uma energia juvenil falando tanto de trabalho quanto da vida pessoal. Emendando uma história na outra, abordou assuntos muito diferentes, sempre demonstrando precisão nas recordações, mesmo que do começo de sua carreira – quando, na virada dos anos 1960 para os 1970, desistiu de ser advogado e jornalista para investir na música. Nesta entrevista, ele comenta as transformações da indústria nos últimos 40 anos, lembra causos com o poeta Mario Quintana em Porto Alegre, a carreira solo, desde quando fora chamado de "Bob Dylan brasileiro", e o show Grande Encontro, que tem apresentado junto a seus parceiros Elba Ramalho e Geraldo Azevedo.
Desde o começo da sua carreira, a música brasileira passou por várias mudanças. Em épocas em que o disco reinava absoluto, você vendeu mais de 1,6 milhão de exemplares apenas do álbum Cavalo de Pau (1982). Como se relaciona com as redes sociais e os serviços de streaming, que hoje dominam a música?
As redes sociais e as plataformas digitais ajudaram a aumentar o público. Com a internet, minha rede de fãs cresceu de forma inesperada. Nunca havia pensado que isso aconteceria, embora eu tenha muitos "virais" na minha carreira. É que, cara, viral não tem como prever. Eu estava em Lisboa, uma vez, para um show que faria por lá. Fui divulgá-lo, em uma rua qualquer, e toquei Anunciação. Reuniram-se ali umas 20 mil pessoas, uma coisa incrível. Outra vez, também em Lisboa, eu passava na frente a uma padaria, e vi um grupo se apresentando, na rua. Perguntei a eles: "Vocês sabem tocar Anunciação?". Eles sabiam, tocaram e alguém publicou na internet. Deu 32 milhões de visualizações. Dia desses, eu estava no aeroporto, no Ceará, e havia um conjunto de forró tocando uma musica minha, que depois foi postada na internet. Deu 10 milhões de acessos. Outro dia, era um cara na (Avenida) Paulista, que cantava La Belle de Jour. Vinte milhões!
Com a internet e, particularmente, os serviços de streaming, o consumo mudou muito.
Tudo mudou. Antes, as gravadoras eram as responsáveis por todos os processos. Agora, as pessoas gravam em suas próprias casas. E compartilham a partir daí. Acontece que há muita gente fazendo isso. Esses tempos, conversei com uma pessoa que trabalha em uma gravadora, que me trouxe um dado interessante, que veio do Spotify: em média, as pessoas só ouvem 19 segundos de uma música. Parece-me um resumo interessante de algo que é o seguinte: o mundo tem mais músicas do que o teu ouvido tem capacidade de ouvir. Ninguém mais ouve nada do começo ao fim. A internet abriu muitas possibilidades, é claro, mas eu vejo que ela favoreceu mais quem já tinha dado alguns passos, quem já estava estabelecido, porque partir do zero, nesse universo, é complicado.
Tudo mudou. Em média, as pessoas só ouvem 19 segundos de uma música. O mundo tem mais músicas do que o teu ouvido tem capacidade de ouvir. Ninguém mais ouve nada do começo ao fim.
ALCEU VALENÇA
Músico
O mercado de shows nacionais parece muito focado no sertanejo, gênero que, inclusive, segundo o relatório mais recente da Crowley (empresa que monitora as rádios) detém mais de 80% das execuções. Qual sua estratégia para competir com esse mercado?
Tenho uns 10 shows diferentes, em vários formatos: um para Carnaval, um para festas de São João, um para cidades grandes, um com a Orquestra Ouro Preto, que virou um DVD, inclusive lançado na Europa. Tenho um acústico. Tenho um show para festivais de rock, em que faço rock mesmo. As pessoas confundem muito o instrumento musical com o gênero. Dá para usar guitarra dentro do rock, mas também dentro do vanerão, dentro de qualquer gênero. Não existe um instrumento que não possa ser usado em determinado estilo.
Como é que você se organiza em meio a tudo isso? Não deve ser fácil.
Não é. Nem um pouco. No período das festas de São João deste ano, fiz uns 10 shows em poucos dias. Logo em seguida, viajei a Portugal, depois para a Holanda. São coisas diferentes, locais diferentes. Quando voltei ao Brasil, estava com os fusos confusos (risos). Mas, dois dias depois, já estava cantando na Fundição Progresso (no Rio de Janeiro). E, outros dois dias depois, cantei na terra do Carlos Drummond de Andrade (Itabira, em Minas Gerais). A adaptação tem de ser mais rápida. Tudo ficou muito mais rápido.
Para onde você vai para descansar?
Moro em vários cantos. Tenho casa no Rio, em Olinda e em Portugal. Não moro em canto nenhum, não casei com nenhuma cidade, fico namorando cada uma por onde passo.
Dentro dessa variedade de shows, um dos que ganharam mais destaque foi o Grande Encontro (projeto que surgiu em 1996 reunindo, além de Alceu Valença, Elba Ramalho, Geraldo Azevedo e Zé Ramalho – que deixou a formação). Vocês estiveram em Porto Alegre em agosto com esse espetáculo. O que mudou nesses 22 anos de projeto?
O público – que, atualmente, é imenso. Nosso público cresceu de uma maneira incrível nos últimos anos. E acho impressionante que as pessoas conhecem todas as músicas. Vem gente de todas as idades, gente que viu o primeiro show, em 1996, gente que se aproximou do projeto nos últimos anos, até adolescentes. Nosso público ficou mais diversificado. E aumentou muito.
Entre tantas ocasiões em que se apresentou no Rio Grande do Sul, certa vez você conheceu o Mario Quintana (1906-1994). Como foi?
Tenho uma história muito boa com o Quintana e com o também poeta Luiz de Miranda. Nos anos 1980, o Miranda me chamou para ir ao lançamento de um livro. Passamos na casa do Quintana para pegá-lo, lembro que ele morava em um hotel (Mario Quintana morou por 12 anos no Hotel Majestic, que hoje é a Casa de Cultura Mario Quintana, no centro da capital gaúcha). Estava chovendo. Peguei o guarda-chuva e, com ele, fui protegendo o Quintana até a livraria, onde seria o evento. Ao chegarmos lá, lembro que não fechei o guarda-chuva e o deixei com ele. Ele acabou ficando assim. Passou a noite todinha embaixo do guarda-chuva, dentro da livraria. Ficou uma coisa engraçada, chamou a atenção aquele guarda-chuva aberto dentro de um ambiente fechado. Dali, saíram duas músicas. Uma é Senhora Dona. (Cantando:) "Se tudo passa como te falei um dia/ eu passarinho, tu passarias". A outra é P da Paixão. Essa música eu havia começado no Porto (Portugal) e só terminei depois desse episódio em Porto Alegre.
O que mudou nesses 22 anos de 'Grande Encontro' foi o público – que, atualmente, é imenso. Nosso público cresceu de uma maneira incrível nos últimos anos.
ALCEU VALENÇA
Músico
Você tem história na capital gaúcha...
Fiz alguns shows memoráveis no (Ginásio) Gigantinho. Em um deles, entrei com um cavalo (risos). O pessoal de um Centro de Tradições Gaúchas (CTG) me convidou para participar de uma espécie de cortejo, uma cavalgada até o Gigantinho. Cheguei, e um cara que segurava a rédea de um cavalo e me perguntou, bem assim: "Tchê, mas tu sabes andar a cavalo?". Respondi: "Sei, sim, sou do interior". Fiz um galopezinho para ele, e saímos andando. Foi muito legal. Chegando no local do show, entrei por por uma das portas laterais, mas muita gente viu.
Você é uma referência para muitos músicos em começo de carreira. Como foi o seu processo de formação?
Luiz Gonzaga (1912-1989) foi parte marcante desse processo, inclusive porque a formação dele é parecida com a minha. Quando pequeno, ele ouvia violeiros. E eu também. Tenho uma formação de música do sertão – e mais Jackson do Pandeiro (1919-1982), claro. Em Olinda – para onde fui morar com uns seis ou sete anos –, resido em uma rua por onde passavam todos os blocos carnavalescos, de maracatu, de frevo, tudo. Isso me influenciou muito. Cresci vendo as bandas de frevo tocando metais. Luiz Gonzaga eu ouvia porque tocava no alto-falante do Cine e Teatro Rex (em São Bento do Una, onde o cantor nasceu). Lembro que, em frente à minha casa, morava o poeta Carlos Penna Filho (1929-1960). Meu tio também era poeta. Por isso, a poesia foi me pegando tanto quanto a música. Minha formação é bem diversa.
Mas você estudou Direito e foi jornalista antes de ser músico.
Sim, além de fazer Direito fui correspondente do Jornal do Brasil no Recife e trabalhei na revista Bloch. Fiz cursos fora do Brasil. Nos anos 1960, me inscrevi num concurso promovido por uma associação norte-americana que oferecia um curso de três meses na Universidade de Harvard. Não sabia nada de inglês, fiz uma redação que comparava o marxismo com a Igreja e apontava poeticamente as contradições das ideologias políticas em voga. Fui aprovado e, em Fall River (Massachusetts), tive aulas e vi palestras com umas figuras importantes da política de Estado dos EUA.
Foi naquela época que um jornal estrangeiro te chamou de "Bob Dylan brasileiro".
Foi em uma reunião do grupo ativista Panteras Negras, em Boston. Eu nem era conhecido ainda, fazia shows em uma praças da cidade, perto da universidade, vinha gente da esquerda, gente da direita, passavam por ali pessoas de vários matizes ideológicos. Em um dia, passou um jornalista, que perguntou que tipo de música era aquela que eu estava fazendo. Respondi que vinha do folclore. Falei que era estudante de Direito e que estava fazendo música contra a ditadura militar. Era um jornal de uma cidade vizinha a Boston. No dia seguinte, a matéria estampava, em inglês: "Alceu Valença, o Bob Dylan brasileiro: uma face contestadora da América". E pegou!
É famosa a história de que, no começo de sua carreira, em um dos seus primeiros shows, no Rio de Janeiro, havia menos de 50 pessoas na plateia. É verdade?
Eram exatas 39 pessoas – só amigos e conhecidos. Isso no meu primeiro show. No segundo, que fiz no Recife, tinha muito pouca gente, também. E foi um dos shows mais doidos que fiz. Era uma doidice tão grande... Nunca fui tropicalista, nunca fui nada além de eu mesmo. Nesse show, as pessoas presentes todas bebiam cachaça, porque uma marca dessa bebida era a patrocinadora. Todos que entravam tinham direito a uma caipirinha. Bebi muito no camarim, antes do show. Entrei "quente". Ali as pessoas acharam que o Alceu tinha endoidado de vez. Nessa época, estava acabando a Faculdade de Direito, e um amigo sugeriu que eu fosse para o Rio de Janeiro, pois havia um escritório onde poderia trabalhar – como advogado. Fui para lá, mas o cara não me arranjou emprego. Fiquei sem saber o que fazer. Até que, um dia, um amigo do meu irmão me convidou para ir à casa dele para uma festinha. Quando cheguei, encontrei o Geraldo Azevedo tocando violão. De repente passaram o violão para mim e eu toquei. O Geraldo disse: "Bicho, você é bom. Bacana a sua música". Quando saí, contei isso ao meu irmão e perguntei: "Será que é verdade?". Meu irmão, que é totalmente racional, disse que, se ele falou, é porque tinha gostado. Aí fiz uma dupla com Geraldo Azevedo e gravamos um disco juntos (Quadrafônico, de 1972).
Você teve muitos problemas com a ditadura militar?
Quando me perguntam isso, lembro da canção Talismã. Rapaz, dei uma ridicularizada no censor. E ele não entendeu. É que eu havia escrito: "Joana, me dê um talismã/ viajar, você já pensou em mais eu viajar/ quando o sol desmaiar?". O censor disse que havia um código de palavras que não poderiam ser usadas. Disse que Joana remetia à marijuana, o que mudava o sentido de "viagem". Eu respondi: "Amigo, e se eu substituir por Diana, a caçadora?". Ele liberou.
Foi com o disco Cavalo de Pau (1982) que as coisas mudaram e você se tornou um grande sucesso popular, certo?
Na época desse disco, eu estava voltando da Europa. Morei em Paris por um ano. Lá, ouvi muito Luiz Gonzaga e li muito Gilberto Freire. Ao voltar, consegui levar a música Coração Bobo a um festival. No Rio, recebi o convite para entrar no casting da gravadora Ariola, que estava apostando forte na música brasileira. Aí fiz esse disco. O pessoal do marketing pediu que eu aumentasse o número de músicas para 12 (eram oito originalmente). Se não, o disco não venderia. Eu disse que não. O disco era aquele que estava ali, feito daquela maneira. Vendeu 1,6 milhão de cópias. Sou mais a minha doidice do que o marketing. E olha que eu achava que não entendia nada disso, naquela época.
Por que, nos últimos anos, você se dedicou ao cinema (seu primeiro longa-metragem, A Luneta do Tempo, foi premiado com dois Kikitos no Festival de Gramado de 2014)?
Após a morte do meu pai, resolvi mergulhar nas minhas origens e comecei a escrever um poema de cordel sobre alguns temas de minha infância, o circo, a poesia, o cangaço. Porém, eu tinha feito, bem antes, um curso de cinema. Mas, naquela época, eu havia parado. Comprei um livro de roteiro, e decidi não voltar ao curso. Queria fazer algo meu, não que fosse uma cópia do que outros já tinham feito. Só demorou um pouco para o filme ficar pronto, 15 anos no total, desde o início do projeto até as filmagens, que foram em 2009, e o lançamento, em Gramado, em 2014.