Cruzando os caminhos em colaborações pontuais desde o final dos anos 1960, alguns dos principais representantes da nordestinidade na música brasileira finalmente registraram em 1996 essa afinidade eletiva. Para comemorar as duas décadas desse grande encontro, Alceu Valença, Elba Ramalho e Geraldo Azevedo voltaram a reunir-se para mostrar um repertório que resiste vibrante à passagem do tempo. Gravado ao vivo em 7 de outubro passado no Citibank Hall, em São Paulo, o CD e o DVD O grande encontro – 20 anos marcam a quarta edição do projeto, desta vez sem Zé Ramalho, integrante da versão original. Na esteira desse lançamento recente, o trio vai se apresentar no Réveillon do Rio, na praia de Copacabana, a partir das 21h45min, interpretando sucessos de suas carreiras e um número especialmente preparado para a festa: o marco zero da bossa nova Chega de saudade, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes.
O embrião do primeiro O grande encontro foi um show em duo de Zé e Geraldo – Elba e Alceu assistiram ao espetáculo no Rio e resolveram ampliar a função para o formato de quarteto. Deu o maior pé: a junção vendeu mais de 1 milhão de cópias, comprovando a potência inventiva e a empatia inabalável de canções que estouraram nas paradas nacionais entre os anos 1970 e os 1980. Mesmo com a ausência do paraibano Zé, a reunião em 2016 dos pernambucanos Alceu e Geraldo com a também paraibana Elba foi a mais produzida de todas: os protagonistas estão acompanhados por uma banda com sete instrumentistas no palco – cujo cenário, criado pelo gaúcho Gringo Cardia, utiliza o trabalho do artista plástico baiano J. Cunha. A interação entre os vocalistas também é maior agora: são nove números em trio e seis em duo – além das quatro canções solo de cada um.
Entre as 29 músicas do roteiro estão sucessos como Táxi lunar, Tropicana, Chão de giz, Dia branco, Banho de cheiro, Anunciação, Frevo mulher, Ai que saudade d’ocê, Coração bobo e Bicho de sete cabeças – primeiro dueto gravado por Geraldo e Elba. Há espaço também para recuperar Me dá um beijo, faixa de Quadrafônico – antológico disco de Alceu e Geraldo lançado em 1972 – e mostrar Elba em uma interpretação pungente de Sangrando, de Gonzaguinha. O grande encontro – 20 anos é o testemunho de que, embora não seja identificado como um movimento tipo Tropicália ou Clube da Esquina, o pessoal do Nordeste merece ser reconhecido como responsável por um dos cancioneiros mais permanentes e ainda influentes da MPB.
Elba Ramalho - cantora
Como vocês escolheram o repertório?
Para mim não foi fácil. É mais fácil para os compositores, eles cantam a obra deles. Fui mais ousada então nas escolhas das quatro músicas que canto sozinha. Repeti o Chão de giz, para homenagear o Zé Ramalho, mas sofro até hoje, porque penso que poderia escolher outras canções também. Como é que eu vou garimpar quatro músicas em meio aos meus 37 discos?
Um dos pontos altos do show é sua interpretação de Sangrando.
É uma ousadia. É uma interpretação forte, que emociona e surpreende a plateia. Acho que é um momento de maturidade minha como cantora. É um desafio, grandes nomes da música brasileira cantaram “Quando eu soltar a minha voz...”. Você tem que ter voz e competência para cantar Sangrando.
Você lançou no final de 2015 o elogiado CD e DVD Cordas, Gonzaga e afins, vencedor de dois troféus no Prêmio da Música Brasileira e indicado ao Grammy Latino. Como você avalia sua carreira atualmente?
Eu trabalho muito, sou uma cantora de ponta a ponta. Faço Carnaval, São João, show com orquestra, MPB. A gente nunca se acomoda e acha que já fez tudo. Com o tempo, você vai ficando com mais sabedoria e serenidade, mais pleno em tudo o que faz. É isso que faz com que eu me sinta jovem, cheia de vida, vivendo o auge. Nossa geração tem uma teimosia, como diz o Belchior. A gente se cuida muito, inclusive fisicamente. Eu, o Alceu e o Geraldo somos muito festeiros, e tem que ter energia para tanta festa.
O que você anda escutando?
Estou curtindo alguns compositores novos. Acabei de gravar com o Zé Manoel, que é um compositor de Pernambuco, elogiadíssimo por esse disco (chamado Delírio de um romance a céu aberto), em que várias cantoras interpretam as músicas dele. Também gravei há pouco com o cantor e compositor pernambucano Almério. Adoro ser chamada por essa nova geração, por autores que têm suas estranhezas e suas belezas.
Quais são seus próximos projetos?
Acabei de terminar um disco de cunho espiritual, não exatamente religioso, que fala de paz. São compositores seculares de diversas religiões ou mesmo ateus que fizeram alguma música sobre Deus. Deve sair em março. Estou pensando em chamar de Mais forte sou ou Paz pela paz. Outro projeto é cantar a obra de Chico Buarque no ano que vem. Esperei 30 anos para fazer isso, chegar ao ponto de maturidade em que eu me sentisse pronta para cantar Chico. Quero garimpar a parte teatral do Chico. Vai ser um belo desafio musical para mim.
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Alceu Valença – cantor e compositor
Quantas apresentações vocês já fizeram dessa nova versão de O grande encontro?
Estamos fazendo de acordo com a disponibilidade das nossas agendas. Já fizemos dois shows no Rio de Janeiro, dois em São Paulo, fizemos em Uberlândia, Brasília, Recife, João Pessoa, Teresina e Campina Grande.
Como surgiu essa parceria entre vocês?
Eu sou compadre do Geraldo Azevedo, sou padrinho da Gabriela, filha dele. Começamos nossas carreiras juntos. A gente se conheceu em Recife, ele era artista e eu era jornalista e estudava Direito. Fui para os Estados Unidos estudar Sociologia e desenvolvimento da América Latina na Universidade de Harvard e cantava por lá algumas músicas do Geraldo. Quando voltei ao Brasil, reencontrei ele em um bar. Fizemos nossa primeira música juntos, chamada Talismã, e estreamos com um disco em comum, Quadrafônico. Depois, estreei no cinema como ator, e Geraldo também, no filme A noite do espantalho (dirigido em 1974 por Sérgio Ricardo). Acabamos fazendo nossas carreiras solo e anos mais tarde, por coincidência, Geraldo e Elba viraram meus vizinhos em Ipanema, no Rio. O grande encontro é a junção de pessoas que se conhecem e que fazem cultura, que não são do entretenimento, que acreditam na arte brasileira, que conseguem sobreviver à crise.
Você também está apresentando o excelente show Vivo! Revivo!, recentemente lançado em CD e DVD, em que reedita o antológico show roqueiro e psicodélico Vivo!, de 1976, e canta músicas de seus três primeiros discos solo.
O interessante é que eu estou com a mesma roupa de 40 anos atrás. Minha irmã guardou esse paletó na casa de minha mãe. Os arranjos são iguais, canto no mesmo tom. O tempo passa, o tempo voa, e a poupança de Alceu continua numa boa (risos).
O grande encontro segue na estrada?
Vamos fazer o Brasil todo, mas tem que ver a questão das nossas agendas. No dia 2 de janeiro, por exemplo, eu viajo para a Europa. Vou para Lisboa e Porto, em Portugal, e talvez para a França com o Vivo! Revivo!, só volto no Carnaval. Quero ir para o Rio Grande do Sul. Dizem que o pernambucano é o gaúcho a pé. Nós temos uma personalidade, um sotaque criativo.
Você está pensando em um novo disco?
Estou preparando um filme novo (Alceu estreou na direção com o longa A luneta do tempo). Estou em um surto criativo. De uns três dias para cá, comecei a escrever um novo filme. É um documentário-ficção sobre Olinda. Tem entrevistas comigo e paralelamente há um romance entre duas pessoas, tendo como cenário Olinda com seu Carnaval, seu mar, seus bares, seus malucos. A luneta... demorou 10 anos, esse agora é mais fácil de fazer, já peguei a lógica de quase produtor. Vou fazer disco com imitações, cantando músicas que eu ouvia no rádio. Vou de Cauby Peixoto a Nelson Gonçalves, de Núbia Lafayette a Chico Alves, o “Rei da Voz”. A capa podia ser um rádio antigo, né? Você quer que eu faça? (Alceu começa então a cantar ao telefone, imitando perfeitamente esses artistas e também Luiz Gonzaga).
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Geraldo Azevedo – cantor e compositor
Vocês já têm previsão de trazer o show ao Rio Grande do Sul?
Ainda não, mas estamos sonhando ir aí. Me sinto carente do Sul do país, sinto falta de produções que nos carreguem para aí. Tenho ido a Porto Alegre bissextamente. Estamos celebrando 20 anos de O grande encontro, mas muitos anos mais de parceria com esses dois malucos aí.
Como se deu o atual reencontro?
A gente se vê pouco por causa das nossas carreiras. Essa nova reunião nasceu a partir de um projeto que eu estava tocando com a Elba, chamado Encontro inesquecível, um show que fizemos por dois anos. Todo mundo nos cobrava a volta de O grande encontro.
Por que Zé Ramalho não está participando?
Gostaríamos que o Zé estivesse junto, mas ele não quis ou não pôde, disse que estava com outras opções. A ideia era comemorarmos antes os 10 anos do projeto, mas o Zé também não quis fazer. Depois do primeiro com os quatro juntos, a gente faz mais dois sem o Alceu. Quer dizer, eu e a Elba é que somos fiéis ao projeto.
O que mudou para vocês nestes 20 anos?
Estamos mais maduros, nossa convivência está muito melhor, temos mais riqueza para compartilhar. A relação com o público também está fantástica, as pessoas que viram o primeiro O grande encontro agora estão trazendo os filhos e os netos. São músicas que fizeram a trilha sonora da vida de muita gente e cujo público vem se renovando. Tem canções que eu canto há mais de 40 anos e que continuam emocionando. A música da gente atravessou décadas, séculos e milênios (risos).
Por falar em reencontro, neste ano você retomou também o show Cantoria, ao lado de Xangai, Elomar e Vital Farias, certo?
Sim, fizemos uma turnê com esse quarteto, celebrando os 30 anos de lançamento do primeiro disco dessa formação. São muitos projetos, além da minha carreira individual. O grande encontro original nasceu de um show que eu fiz com o Zé Ramalho chamado Dueto, em que rodamos em 1995 o país inteiro, só não fomos ao Sul. Quando levamos o show para o Rio, a Elba e o Alceu estavam na plateia. O público então cobrou a presença deles no palco e nós chamamos os dois. Foi assim que surgiu O grande encontro.
Uma das músicas dessa nova edição é Me dá um beijo, do disco que você gravou em 1972 com Alceu.
Desde o primeiro O grande encontro eu insistia com o Alceu para cantarmos essa música, mas ele tinha uma resistência danada. Mas agora ele cedeu. É a primeira faixa do Quadrafônico, a gente começou nossa carreira fonográfica ali, juntos. A nossa celebração nesse show é mais ampla, é de uma amizade de quase 50 anos. A gente é irmão.
Você está planejando um disco novo?
Meu sonho é entrar em estúdio, porque estou com muitas canções novas. Quero lançar um disco em 2017 de qualquer jeito, nem que seja só de violão e voz gravado no iPhone. Meu último disco é de 2011 (o álbum Assunção de Maria e Geraldo Azevedo). Começamos a fazer uma música nova, eu e o Alceu. Ainda não sei o que vai acontecer com ela, vamos ver.
REPERTÓRIO DO DVD
- Anunciação
- Caravana
- Me dá um beijo
- Sabiá
- Papagaio do futuro / Coco das serras
- Moça bonita
- Sétimo céu
- Dona da minha cabeça
- Dia branco
- Só depois de muito amor eu vou embora
- Bicho de sete cabeças
- Chorando e cantando
- Ao que saudade d’ocê
- Chão de giz
- Sangrando
- Na base da chinela / Qui nem jiló / Eu só quero um xodó
- Ciranda da rosa vermelha
- Flor de tangerina
- La belle de jour / Girassol
- Coração bobo
- Cabelo no pente
- Tropicana
- Táxi lunar
- Ciranda da traição
- Pelas ruas que andei
- Banho de cheiro
- Frevo mulher
BÔNUS
- Tesoura do desejo
- O princípio do prazer
O grande encontro – 20 anos
De Alceu Valença, Elba Ramalho e Geraldo Azevedo
CD com 15 faixas e DVD com 29 faixas, Sony Music.
R$ 25 (CD), R$ 33 (DVD) e R$ 65 (kit com DVD e CD duplo).
Cotação: 4/5