"Para uma pansexual adepta do sexo positivo e do poliamor, palavras como monogamia nunca chegaram a sequer ser uma possibilidade remota", declara ousadamente no quarto episódio Nola Darling, a heroína de 27 anos da nova série de televisão de Spike Lee, She's Gotta Have It (em português, Ela Quer Tudo).
Se a afirmação soa estranhamente familiar, é porque sua personagem não só é vintage como também pertence à geração Y. Ela originalmente apareceu no filme de estreia de Lee, de mesmo nome, há mais de 30 anos, e que agora foi atualizado e transformado em um drama da Netflix.
Anunciada como uma "comédia seriamente sexy" em 1986, o filme girava em torno dos relacionamentos amorosos de Nola com três homens: o poético e excessivamente possessivo Jamie Overstreet, o narcisista Greer Childs e o desempregado fã de hip-hop Mars Blackmon (interpretado por Lee). Na época, Lee observou que Nola, uma artista novata morando no Brooklyn, era "uma jovem negra no controle de sua vida, como um homem, com três rapazes que conseguia manobrar".
E continuou: "Esse paradoxo é engraçado, é bem louco mesmo".
Em uma época na qual as personagens afro-americanas da televisão em programas como Being Mary Jane, do canal BET, Insecure, da HBO, e Scandal, do ABC, estabelecem abertamente sua liberdade sexual por ter múltiplos amantes homens – ou, no caso de Master of None, da Netflix, e de Queen Sugar, da OWN, também mulheres – a sexualidade de Nola não parece mais cômica nem pouco convencional. É algo comum, apenas parte da identidade de uma jovem artista negra.
O resultado surpreende: essa heroína é a mais feminista já feita por Spike Lee.
Os críticos há muito tempo perceberam o problema que Lee tem com as mulheres. Em 2009, durante o 20º aniversário de seu filme mais famoso, Faça a Coisa Certa, a jornalista Teresa Wiltz observou: "Quando se trata de suas personagens femininas, é como se Lee não conseguisse decidir se deve adorá-las ou castigá-las".
A escritora feminista Bell Hooks escreveu uma crítica ainda mais incisiva sobre She's Gotta Have It. "Os homens não precisam objetivar a sexualidade de Nola porque ela mesma se encarrega disso. Assim, sua personagem se torna a projeção de uma noção machista estereotipada de uma mulher sexualmente assertiva; na verdade, não é liberada."
Lee costumava desafiar com frequência esse tipo de caracterização de seu trabalho. Quando o entrevistei por causa de Chi-Raq, sua adaptação de 2015 da sátira clássica de Aristófanes, Lisístrata, ele me perguntou se eu realmente assisti ao filme quando lhe perguntei como as mulheres poderiam fazer uma greve de sexo sem a ameaça de agressão.
Em uma entrevista recente, Lee foi menos defensivo. "Tenho mais de 30 anos, e o mundo mudou. Acho que Nola é uma personagem muito forte. Ela é uma mulher que faz malabarismos com três homens, e acho que existem mais mulheres assim agora. Só que a maneira com que elas são julgadas não necessariamente mudou, no que diz respeito aos homens."
A mudança para a televisão – com 10 episódios de 30 minutos cada – também contribuiu para a evolução, permitindo que Lee aperfeiçoasse Nola (interpretada por DeWanda Wise com uma mistura atraente de carisma, vulnerabilidade e confiança). "Filmamos She’s Gotta Have It em 12 dias em meados de 1985, e o filme ficou com 86 minutos. Hoje, tudo custou milhões e filmamos durante 63 dias. Temos um quadro muito maior, o que nos deu mais tempo e mais recursos para mostrar Nola Darling, uma artista batalhadora no atual bairro gentrificado de Fort Greene."
E a televisão deu mais espaço ao escritor, que Lee preencheu com atrizes e escritoras afro-americanas, incluindo sua esposa, Tonya Lewis Lee que, segundo o diretor, foi quem imaginou o filme como série. (Este é o primeiro grande projeto no qual o casal trabalhou junto, além de vários livros infantis, inclusive Please, Baby, Please, que lembra o pedido desesperado e bem-humorado que Mars Blackmon fez a Nola, como um pai falando com uma criança agitada.)
"Nola é uma personagem criada por um homem. No processo de produção do programa, isso ficou ainda mais evidente. Daí, adicionamos vozes femininas para dar vida a ela, e houve momentos em que Spike dizia: 'Não entendo o que vocês estão falando'. 'Isso porque você é homem, e há coisas que não pode ver como homem, mesmo para um tão aberto como você tenta ser. É só prestar atenção e deixar que a gente te ajude'. E foi isso que ele fez", disse Lewis Lee, que é produtora-executiva da série.
Uma conversa em particular foi importante para ela. Era sobre a cena em que uma Nola ligeiramente embriagada, depois de passar a noite bebendo e conversando com sua melhor amiga, Clorinda, tropeça na rua a caminho de casa. "Eu, como mulher, quando vi essa cena, percebi algo diferente, você reconhece essa sensação de vulnerabilidade real. E, às vezes, os homens não veem isso", disse Lewis Lee.
Dos oito escritores creditados, quatro são mulheres: Radha Blank, Eisa Davis, Joie Lee (irmã de Spike) e a dramaturga ganhadora do prêmio Pulitzer Lynn Nottage (Ruined e Sweat). E o envolvimento delas alterou a imagem de Opal, uma personagem lésbica que Hooks já havia descrito como "predatória".
"Os tempos mudaram, e Opal assumiu uma forma muito diferente agora. Ela oferece estabilidade e amor a Nola de uma forma que ela não encontrava em alguns homens", disse Nottage. E acrescentou que Nola é "uma mulher poliamor com sexualidade fluida" e se sente incrivelmente atraída por Opal como amante também.
A série não só expande o universo sexual de Nola, mas também presta atenção às maneiras em que ela e outras personagens femininas negras estão constantemente sendo observadas (por lojistas brancos), exploradas (em um clube burlesco local ou em um reality show), ameaçadas (por policiais) e até mesmo agredidas (por homens na rua todos os dias).
"O filme original termina com um violento ataque contra Nola, que não foi adequadamente resolvido", disse Nottage, referindo-se à cena altamente criticada na qual Jaime a estupra. "Acho que agora temos as ferramentas necessárias para ter essa conversa, particularmente na comunidade afro-americana, de um modo realmente aberto."
Lee afirmou ter se arrependido daquela cena, mas disse que abordar essas críticas não foi sua motivação para tratar sobre o assunto de modo mais franco na série de TV. "As pessoas se esquecem, mas estou aí há 30 anos", disse ele, modificando o número com um palavrão. "Foi um peso, mas continuo fazendo o que faço, continuo tentando aperfeiçoar meu trabalho."
(Esse comentário veio imediatamente depois de ele ter listado uma série de críticos de seus primeiros trabalhos, incluindo Hooks e David Denby, e a profecia de Joe Klein em uma revista nova-iorquina que dizia que Faça a Coisa Certa poderia causar tumulto ou motim racial.)
A cena do estupro de She’s Gotta Have It não aparece na versão da TV. Em seu lugar, no primeiro episódio, Nola é assaltada na rua por um desconhecido, o que funciona como um catalisador para que encontre sua voz como artista e ativista.
Como pintora de retratos de afro-americanos e artista com estilo de guerrilha que anonimamente começa uma campanha antiassédio nas ruas, Nola representa o Brooklyn de Lee, cenário frequente e assunto da maioria de seus filmes, em uma encruzilhada.
Para ela, a vida de luta para se tornar uma artista é agravada pelo aumento do aluguel, por divergências culturais com os novos vizinhos brancos e endinheirados, e pelo deslocamento dos moradores negros que, como ela, viveram no Brooklyn a vida toda.
Lee disse: "Com a gentrificação, ninguém fala sobre aqueles que foram afastados – isso nunca vem à baila. Torço para que, se tivermos mais duas temporadas, possamos explorar essas coisas, as boas e as más, da República do Brooklyn".
Por Salamishah Tillet