Diretor do provocativo O Ornitólogo, além de filmes marcantes como Odete (2005), Morrer como um Homem (2008), João Pedro Rodrigues, 50 anos, fala a seguir sobre sua abordagem da religiosidade e comenta as particularidades do cinema português contemporâneo, um dos mais prestigiados pela crítica internacional neste século 21.
Leia também:
"O Ornitólogo" traz versão iconoclasta da vida de Santo Antônio
Lista: 10 filmes essenciais do cinema português no século 21
Por que você decidiu falar sobre religião em O Ornitólogo?
Não sou religioso, mas Santo Antônio me interessa especificamente. Em 2012, lancei um curta (Manhã de Santo Antônio) que aborda o sagrado e o profano ao narrar o retorno para casa de jovens que celebraram de forma pagã a festa que é comemorada em Portugal em homenagem a esse santo. Interessam-me os mitos da história portuguesa de uma forma geral. Santo Antônio entra nessa conversa porque foi usado pelo governo autoritário que comandou o país entre 1933 e 1974. A ditadura fez da religião um de seus pilares, construindo uma imagem de Santo Antônio que não corresponde à realidade. Ele foi eleito um representante dos valores da família e do casamento, só que era um franciscano que vivia só, na pobreza, tendo abandonado os bens materiais. Somei à vontade de falar sobre esse homem real que virou santo a minha paixão pelos pássaros – eu queria ser ornitólogo em criança –, formatando assim a minha versão pessoal da história dessa figura tão marcante para nós portugueses.
Mas o filme tem diversas outras referências à teologia cristã, inclusive a um Jesus bem sui generis.
O fato de eu não ter tido uma educação religiosa não me afastou desse universo. Aprendi as histórias da Bíblia por meio da pintura. A arte deu suporte à religião em séculos passados – quando Santo Antônio viveu, por exemplo. Sempre chamou a minha atenção, nesse contexto, a tênue linha entre o sagrado e o profano, desde as representações dos corpos nessas pinturas até à "super-heroicização" dos santos. Essa dualidade sempre existiu, até porque está na origem do problema: como representar uma entidade mitificada, transcendental, com a imagem de um corpo? A ideia de encontrar um corpo físico é uma ideia, em si, erótica. Em O Ornitólogo trabalho com a transformação, com o homem comum antes de ter virado santo, sujeito às banalidades da carne, que deseja, que está inserido em um sistema natural. Ou seja, pensei no projeto praticamente como um western, como o percurso de um homem face à natureza, aí incluídas inúmeras provações e desvios até que ele chegue ao seu destino.
Sabe-se pouco sobre a vida de Fernando, o homem que se transformou em Santo Antônio. Como foi a pesquisa para se chegar aos acontecimentos abordados no filme?
Tudo o que se sabe sobre ele é da ordem do mito. Não há testemunhos de época que descrevam sua vida além do fato de que nasceu no século 12, em Lisboa, e morreu no século 13, em Pádua (Itália). As informações foram todas acumuladas posteriormente a isso. Suas primeiras biografias datam do século 16. Isso me deu uma certa liberdade para relatar os acontecimentos de sua trajetória. Diz-se, por exemplo, que ele queria evangelizar os muçulmanos, que àquela altura eram chamados "infiéis", e por isso foi ao Marrocos. Lá, adoeceu e teve de voltar, sofrendo um acidente marítimo na viagem. Preferi simplificar isso transformando esse episódio – que é uma construção ficcional, a rigor, porque é um relato construído sem testemunhas – em um naufrágio de caiaque que se deu em meio à observação dos pássaros. A relação com a natureza está ali.
A jornada do personagem encontra não apenas obstáculos, mas alguma hostilidade da natureza – simbolizada, por exemplo, pelas trocas de olhares com os pássaros. Fale um pouco sobre essa relação, por favor, e especialmente sobre como foram feitas as imagens que representam o ponto de vista dos pássaros.
Quando observava as aves, eu sempre ficava pensando sobre como se dava o inverso, ou seja, como essas aves nos observam. Isso é algo misterioso até hoje – embora se saiba, por exemplo, que em geral elas têm um campo de visão mais amplo. Para mim era importante mostrar, quando a câmera adquirisse o ponto de vista das aves, que a natureza já enxergava o Fernando em mutação, transformando-se em Antônio. Importante também é dizer que não se trata da transformação em santo, mas em outro homem – que seria, este sim, santificado pelas gerações posteriores. Essas sequências específicas dos pássaros foram feitas com drones e câmeras GoPro. Era o melhor recurso, pois minha ideia era filmar a natureza "acima" das pessoas, inatingível, como observadora do homem. Foi por isso também que fui rodar O Ornitólogo quase inteiramente em parques naturais protegidos cujo acesso humano é controlado.
Qual é o segredo da pungência do cinema português atual? É a formação dos cineastas? O sistema de produção e financiamento dos projetos?
Acho que é a liberdade que nós temos. Os filmes que fazemos são muito diferentes entre si. Os cineastas têm vozes bem distintas. E todos conseguem se expressar. Tendo a achar que, no cinema, de um modo geral, cada realizador busca um caminho próprio. Em Portugal, há espaço para caminhos traçados de maneiras muito particulares. Quando fiz O Fantasma (2000), meu primeiro longa, não tinha ideia do que aconteceria, se conseguiria estrear o filme, se ficaria bom, se teria repercussão. Meus trabalhos conseguem circular bem, mas apenas em festivais. Isso se repete com o cinema de outros diretores. Porque o circuito comercial é muito fechado. Sempre acreditei no cinema que busca experiências diferentes, que não sejam iguais às que o espectador já sentiu antes. É o que procuro. Agora, se isso vai chegar às pessoas, permanece um mistério. Talvez o que haja de particular na cinematografia portuguesa seja exatamente isso: não temos medo do mistério. Gerações anteriores não tiveram, e a geração que surgiu depois da minha, do Pedro Costa e do Miguel Gomes, tampouco.
Como seus filmes e também os de Pedro Costa e Miguel Gomes dialogam com o grande público em Portugal? É mais fácil lançar comercialmente os longas de vocês em Portugal do que em outros países?
É difícil em todos os lugares. Nossa luta maior é contra o tempo. Fazemos filmes que, de fato, não são para um consumo tão fácil. Mas os exibidores não têm muita paciência: tiram-nos de cartaz rapidamente se os resultados não compensam nos primeiros dias de exibição. Há uma voragem muito grande de Hollywood e do cinema mais comercial, que tem seu trabalho facilitado pela predominância das salas multiplex. E em Portugal há poucos distribuidores pequenos, que fogem do sistema das chamadas majors. Penso que a França conseguiu um modelo exemplar: é o país em que as produções independentes nacionais mais encontram espaços. Não é por acaso que se tornou um mercado de referência para nós, aqui em Portugal, apresentarmos nossos filmes no Exterior. Imagino que também o seja para os cineastas brasileiros.
A efervescência criativa da cinematografia portuguesa é acompanhada pelo surgimento de escolas de cinema no país? Ou a formação dos técnicos se dá sobretudo no próprio mercado?
Todos os cineastas que mencionamos aqui, incluindo eu, vieram da Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa. Penso que hoje, dado esse contexto de mercado fechado que mencionamos, existam muitas escolas de cinema. Muita gente se forma e, a rigor, não tem lugar para trabalhar. Produzimos, em média, de 12 a 15 longas-metragens por ano. A maior parte é formada por filmes sem muita qualidade, feitos para consumo interno. Esses títulos que circulam no Exterior, sobretudo em festivais, são minoria. Mas são muito importantes, porque formam novos públicos, abrem horizontes, provocam o público com sensações diferentes. Não vejo necessidade, por exemplo, de repetir fórmulas, principalmente as que Hollywood faz melhor do que todos nós. Quanto mais variedade houver, quanto mais formas diferenciadas de se contar histórias uma cinematografia apresentar, melhor ela deve ser. É no que eu acredito.