Calhou começar com um clichê literário, mas paciência. Pois é uma noite fria e chuvosa, e Luis Fernando Verissimo está sentado na poltrona com as pernas esticadas no pufe e olhos na transmissão em 42 polegadas da sessão de impeachment de Dilma Rousseff no Senado. Naquele momento, a TV é a única luz da sala, o que torna o ambiente em torno do escritor azulado como o carpete da casa mais nobre do Congresso Nacional.
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Sob a pintura que retrata o pai, Erico Verissimo, o escritor assiste com atenção ao discurso inflamado de Aécio Neves (PSDB-MG) em defesa da cassação da presidente, sempre com "e". Enquanto isso, a família Verissimo perambula agitada pela casa. O programa daquela noite de terça-feira é uma homenagem aos 80 anos do escritor no Sarau Elétrico, tradicional evento literário realizado no Bar Ocidente, no bairro Bom Fim. Mas chove demais, e a mulher de Verissimo, Lucia, e a filha mais velha do casal, Fernanda, estão preocupadas. O plano de chamar dois táxis para a família é abortado. Fernanda prefere levar os pais para que ela mesma auxilie no desembarque. Fica decidido que o filho mais novo, Pedro Verissimo, e o autor dessa reportagem seguiriam de táxi.
Aécio encerra o discurso, e o presidente da sessão, ministro Ricardo Lewandowski, dá a palavra ao senador, pastor e sambista gospel Magno Malta (PR-ES).
– Ah, não – devagarinho, Verissimo alcança o controle remoto e abaixa o volume até o silêncio. – O Aécio Neves eu até aguento, mas esse cara aí não dá. Lucia?
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Verissimo chama baixinho a mulher. Mesmo do outro lado da sala, ela o escuta e vem em direção ao marido, que faz menção de levantar da poltrona. A mulher explica os planos para dali alguns minutos enquanto ele estica os braços, um tanto trêmulos. Com as duas mãos, Lucia segura os antebraços do marido, como se o casal fosse rodopiar em uma ciranda, e se inclina para trás alçando o marido do sofá. A passinhos leves, Verissimo caminha até a mesa de centro, onde alcança algumas folhas de ofício. As leituras da noite serão os originais de Ver!ssimas (Ed. Objetiva), coletânea de frases, reflexões e sacadas organizadas em verbetes e transformadas em livro, a ser lançado no próximo dia 30, em Porto Alegre (às 19h, na Livraria Cultura). Enquanto ele dobra as folhas, a mulher lhe desamarrota o colete. Estão prontos.
Após alguns malabarismos com os guarda-chuvas no quintal em torno do carro, Fernanda acomoda os pais no banco de trás. A preocupação com a chuva decorre da saúde do autor, que passou por momentos complicados em 2016. Em 25 de março, durante estada no Rio de Janeiro, Verissimo foi internado em razão de uma infecção respiratória. Teria alta em 3 de abril, dois dias depois de implantar um marca-passo. Embora tudo tenha corrido bem durante a internação e depois dela, foi o episódio de saúde mais sério desde novembro de 2012, quando o cronista esteve em estado grave. Passou 23 dias internado no Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, após a complicação de uma gripe. Pedro aborda o assunto a caminho do sarau, ao comentar sobre o lado musical do pai.
– Ele me disse que não quer mais tocar saxofone, porque está sem forças. Mas eu não boto muita fé. Já ouvi essa conversa antes.
A possível aposentadoria do jazz é uma das consequências dos 80 anos, completos, na verdade, nesta segunda-feira (26). Mas há outra. Verissimo, que nunca foi um sujeito dos mais falantes e eloquentes, vai se tornando uma figura ainda mais discreta. E, assim, complicando o enigma em torno de si. Palpites não faltam. Elogios tampouco. Mas por mais próximos que sejam seus amigos e familiares, por mais minuciosos que sejam os estudiosos da sua obra, ninguém consegue dizer com precisão como funciona a mente de Verissimo.
O processo criativo do autor é um mistério. Bem como a origem de suas ideias – "uma vez imaginei o encontro de Batman e Drácula numa clínica geriátrica na Suíça". Diferentemente de cronistas que se especializam em transformar causos de conhecidos em literatura, amigo algum de Verissimo consegue apontar sequer uma crônica baseada em fatos verídicos. Mesmo que os livros de sua autoria formem pilhas (somente pela editora mais recente, a Objetiva, são 39 títulos em catálogo), é raríssimo quem já o tenha visto escrevendo. Certa vez uma empregada da família, incomodada, dedurou para Lucia que o marido passava as tardes no computador em joguinhos de carta. Não bastassem as incógnitas, há também as contradições. Como pode ser famoso pela timidez, mas sair em turnê, vestir smoking e subir nos palcos para jazz sessions de improviso? Que tipo pouco falante é esse que praticamente nunca recusa uma entrevista, seja de um veículo reconhecido, seja de um jornalzinho de estudantes? Com quem Verissimo simpatiza? Quem não suporta? O que sente, afinal?
GALERIA: AS COBRAS
Mesmo o melhor amigo, o jornalista Zuenir Ventura, passados quase seis décadas de amizade, ainda se surpreende com alguns traços da personalidade do companheiro de inúmeras conversas, viagens e projetos. Em 2009, o jornalista Arthur Dapieve teve a ideia de reunir os dois amigos por quatro dias em uma fazenda e registrar o que surgisse no bate-papo. Os diálogos se transformaram em um livro leve e delicado chamado Conversas sobre o tempo (Editora Agir). Zuenir conta:
– Se não me engano foi em uma daquelas conversas, não sei se entrou no livro, que eu comentei que não gosto de escrever. Eu gosto é de ter escrito. Mas o processo de escrita , em si, é muito sofrido. E ele disse: "Pois é, eu também." Aquilo me deixou muito surpreso. Porque uma das coisas justamente que eu invejava na personalidade dele é que ele parecia se divertir quando escrevia.
Verissimo já está acomodado em um banquinho diante de dois andares de uma plateia aos murmúrios de ansiedade quando um dos apresentadores do Sarau Elétrico, o professor de literatura e escritor Luis Augusto Fischer, traz justamente esse tema – o enigma Verissimo – à tona. A personalidade de Luis Fernando intrigava também o maior escritor gaúcho de todos os tempos: seu pai, Erico. Fischer dá voz a um trecho do segundo volume de Solo de Clarineta, o livro de memórias do autor de O tempo e o vento:
"Em meados de fevereiro de 1959 embarcamos para Portugal, num navio italiano. (...) Levava a bordo comigo uma personagem viva que me interessava e me intrigava de maneira particular: meu filho. Era ensimesmado, retraído e silencioso como eu fora na idade dele. Eu queria saber o que ele pensava de mim. Mais importante ainda: o que sentia por mim. Sua aceitação, seu amor eram-me tão necessários como o pão e o ar. Eu compreendia – e como! – que o fato de ser filho de um escritor conhecido constituía para ele uma espécie de rótulo incômodo que teria de carregar colado à pele vida em fora."
À época, Luis Fernando tinha 22 anos. Mas Erico se recorda de um episódio em Torres, quando o filho tinha 12 anos e um amigo médico convidou o garoto para jogar "tênis de praia" fingindo não saber quem ele era. O doutor lhe relataria o episódio, depois:
"Como não conhecesse seu oponente – enquanto a bola ia e vinha – submeteu-o a um breve interrogatório, naturalmente em voz muito alta:
– Menino, como é o teu nome?
A resposta tardou alguns segundos.
– Luis Fernando.
– Luis Fernando de quê?
Nova pausa.
– Verissimo.
– Parente do Erico?
Outro hiato.
– Sou.
– Mas que é que você é dele?
Nova hesitação.
– Filho.
Este diálogo pareceu-me revelador de toda uma situação psicológica".
Na entrevista que segue esta reportagem (leia aqui), Luis Fernando menciona o pai espontaneamente três vezes. Logo na primeira reflexão sobre completar 80 anos, comenta ter vivido já 10 anos além de Erico. A entonação parece ao mesmo tempo uma comemoração e um lamento, pelo pai – cardíaco, como o filho – ter partido cedo. A relação entre Erico e Luis Fernando era de duas figuras amorosas uma com a outra, mas entre um homem introspectivo e um jovem mais introspectivo ainda. Embora Luis Fernando já começasse a se aventurar na escrita nos últimos anos de convivência com Erico, morto em 1975, os dois jamais trocaram figurinhas sobre a profissão. Luis Fernando se limitava a ler alguns originais do pai, mas nunca deu ou recebeu palpites. Segundo Lucia, que se mudou para a casa dos sogros no bairro Petrópolis "provisoriamente" em meados dos anos 1960 e lá está desde então, Erico compartilhava com ela, vez por outra, a angústia de achar que o filho não acertaria a profissão ideal para deslanchar seu talento. Erico partiu, no entanto, tranquilo de que o filho havia, a seu modo, encontrado rumo.
CRONISTA DE UM
TEXTO SEM VIGAS
Talvez a figura mais determinante para que Verissimo decidisse apostar na carreira de cronista, segundo Lucia, tenha sido Joaquim Paulo de Almeida Amorim, ou apenas Paulo Amorim, jornalista e advogado que hoje dá nome à cinemateca da Casa de Cultura Mario Quintana. Foi Amorim quem percebeu o talento do (nem tão) jovem autor da seção Programinha, de Zero Hora, em 1967. A coluna deveria ser uma simples e enfadonha repetição, dia após dia, dos restaurantes e casas noturnas abertos na cidade em cada dia da semana, com breves linhas descrevendo as atrações do cardápio ou do palco. E era mesmo, na maior parte. Exceto quando, para preencher espaço ou por simples patifaria, Verissimo inventava características fictícias para espaços reais. Ou ainda quando descrevia o cardápio de um pé-sujo qualquer como se fosse um bistrô francês. Dividindo espaço com as consagradas casas noturnas do bairro Independência, como o Encouraçado Butikin e Uísque a Gogo, apareciam, por exemplos, resenhas como a da boate Mau Mau – "A luz invisível continua um sucesso. A única pessoa que viu está desaparecida. O porteiro parece humano, mas é na verdade um engenhoso robô de polietileno feito no Japão."
Hoje, Verissimo já não consegue discernir o que era parcialmente ou completamente fictício. A Mau Mau, por exemplo, ele acha que era verdadeira: mas um lugar escuro infrequentável, guardado sempre por um porteiro imóvel e mal-encarado. Diferentemente da churrascaria Papai Adão – onde era indelicado pedir a costela –, ou do clássico CTG erótico Ai Bota Aqui. Duas piadas contrabandeadas entre atrações reais. Fato é que a coluna começou a fazer sucesso e alguns estabelecimentos de verdade quiseram pagar para ser caçoados pelo autor da página, ainda desconhecido. Aí perdeu a graça. (a reportagem continua depois do gráfico)
Já naquele pequeno espaço, aparecia um talento do escritor que se tornaria cada vez mais evidente nas suas crônicas futuras: um poder de síntese capaz de situar o leitor em todo um universo em duas ou três linhas. O que dá ao texto de Verissimo uma tremenda oralidade.
– Olha, em mais de 15 anos que fazemos o Sarau Elétrico, seja o tema que for, é difícil uma noite em que não seja lido pelo menos um texto dele. Porque ele já escreveu sobre tudo e porque é um texto lido como se estivesse sendo falado – comentaria depois do evento a apresentadora do Sarau e radialista Katia Suman.
Na homenagem da noite, Katia lê o texto em que Verissimo deliberadamente difama o astro George Clooney, mas com uma boa justificativa: "É bonito. É charmoso. É rico. É bom ator. Faz bons filmes. Está envolvido com as melhores causas. E que dentes! Não temos defesa contra esse massacre. Só nos resta a calúnia."
O texto sai entrecortado por gargalhadas, da plateia e da própria oradora:
"É solteiro, portanto, claro, gay. Tem casa num dos lagos italianos, o que já é suspeito, e dizem que anda pelos seus chãos de mármore depois do banho de espuma vestindo um longo caftan bordado e sendo borrifado com perfumes florais pelo seu amante filipino Tongo, enquanto seu amante italiano, Rocco, prepara a salada de rúcula completamente nu". Ao longo da crônica, Clooney ainda seria acusado de bater na mãe todas as quintas-feiras, de ter mau-hálito, seborreia, desvio de septo e, por fim, de votar no partido republicano.
– Se os textos dele obedecem a alguma fórmula, não sei dizer qual é. Se você ainda consegue enxergar as vigas, é porque a obra não está pronta ou porque não foi bem feita. Os textos do Verissimo são justamente o contrário. São tão bem escritos que parece ter sido fácil de escrever, mas claro que sabemos que não é – compara o escritor Antonio Prata, apontado como um dos herdeiros de Verissimo no estilo de crônica. – O que eu posso dizer, sim, é o porquê da minha admiração por ele.
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Prata cita o "humor do absurdo", em que enxerga aproximações entre o texto de Luis Fernando e o do grupo de comediantes britânicos Monty Python. Como exemplo, menciona os jogos de palavras. Longas brincadeiras textuais com o significado e a sonoridade dos verbetes – "Não posso ver a palavra 'lascívia' sem pensar numa mulher, não fornida mas magra e comprida. (...) Lascívia está sentada num trunfo em frente ao seu pinochet, penteando-se...". Prata cita ainda as crônicas com premissas absurdas, como a da família que adotou um papagaio falador, mas niilista. O negativismo do mascote enchia o poço do edifício e entrava pelas cozinhas, deprimindo os condôminos. Além do preço do feijão, os vizinhos agora tinham que pensar na finitude humana.
– Um mito derrubado pelo Verissimo é aquele de que só existe humor contra. Que toda piada tem de ser um ataque a algo ou a alguém. Mesmo quando ele coloca o dedo nas feridas, é elegante. Como se o humor estivesse escondido atrás da frase. É uma visão de mundo generosa. Um certo assombro a favor da vida – resume Prata.
É Prata quem assina um dos prefácios de Ver!ssimas. "Se um óvni pousar no seu quintal e um ET te pedir uma obra de referência sobre os terráqueos, não titubeie: entregue este livro na mão dele com a certeza de que os extraterrestres levarão consigo um retrato amplo, geral e irrestrito de nossa tragicômica humanidade." Quando chega sua vez de falar à plateia do Ocidente, Verissimo lê algumas de suas sacadas selecionadas para o livro. Vai passeando jocosamente por alguns dos seus assuntos preferidos. Fala sobre a desigualdade social:
"O Brasil é governado por minoria esmagadora".
Sobre sua fama de glutão:
"A frase mais enternecedora da língua portuguesa é 'esse é o colesterol bom'. E a mais bonita é 'os triglicerídios estão normais'".
Futebol:
"Argentino, como se sabe, não joga futebol de blazer azul porque o juiz não deixa".
Passa pelo humor nonsense:
"Beleléu tem algumas características estranhas. Nenhum dos seus matos tem cachorro, todas as suas vacas estão no brejo – e todos os seus economistas são brasileiros".
E, por fim, recorda tiradas tão repetidas por aí que por vezes vezes nos esquecemos a autoria:
"Viva todos os dias como se fosse o seu último. Um dia você acerta".
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