Singularidades e alguma excentricidade cercam a obra de Raduan Nassar, este brasileiro descendente de libaneses (árabes) nascido em 1935 no interior de São Paulo. Em títulos correntes, sua obra se compõe de três livros – Lavoura Arcaica, Um Copo de Cólera e Menina a Caminho, num total de umas 360 páginas em formato pequeno e letra grande.
A Cup of Rage, tradução de Um Copo de Cólera lançada no começo do ano na Grã-Bretanha, acaba de receber indicação ao importante Prêmio Man Booker International, da Fundação Booker Prize, inglesa, dedicada a toda e qualquer ficção traduzida ao inglês. (O prêmio para ficção em inglês começou a ser distribuído em 1969, e este internacional em 2005. Diz o site que ambos se destinam a narrativas de qualidade para um “púbico geral inteligente”.) Acompanham Raduan Nassar na lista de 13 finalistas deste ano dois Nobel de Literatura: Orhan Pamuk (2006) e Kenzaburo Oe (1994).
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Depois de 1980, Raduan Nassar não só parou de escrever como disse preferir ser esquecido, nunca mais concedeu entrevista para jornal, acumula recusas de toda ordem. Agora mesmo, com seus dois principais títulos (os dois primeiros da lista, ambos já filmados) vertidos para o inglês e publicados na Inglaterra, ficamos sabendo que ele complicou o que pôde a vida do editor brasileiro que agenciou essa tradução. (Seus livros já tinham sido traduzidos ao alemão, ao francês e ao espanhol.)
Pelo escasso número de títulos e pelo abandono da arena por parte do escritor, a obra de Nassar poderia ser catalogada como um dos tantos casos destinados à lata de lixo da história literária, sem mais. Ocorre que, bem, nesses meros três títulos, e especialmente nos dois casos luminosos de – atenção para o som das palavras, seu eco interno, suas aliterações – Lavoura Arcaica e Um Copo de Cólera, estamos falando de grande literatura, destinada a marcar todo um tempo e fixar-se como casos superiores. Como pode?
Resenha do The Guardian saúda erotismo não óbvio
Raduan Nassar correu por fora de qualquer pista previsível, e inventou com qualidade. Escrevendo nos anos 1970 brasileiros, sob a ditadura, tirou da cartola um fraseado abundante, copioso, coleante – num tempo de tanta literatura curta-e-grossa –, que não teme as metáforas – num momento de intenso realismo linear – e aceitou lidar com abominações que quase todo mundo varre para baixo do tapete.
Em Lavoura Arcaica, um jovem filho de família patriarcal, imersa no mundo rural, sai de casa, mas é buscado de volta e precisa conviver com fantasmas vivos como a opressão paterna e o amor torto por uma irmã; em Um Copo de Cólera, um casal passa do sexo ao insulto, dele ao erotismo, deste para um afastamento aflitivo, com mediações tênues e motivos irrelevantes, tudo temperado por muito autoritarismo de classe, machismo e fragilidade, num andamento que vai pesando cada vez mais e termina em estupor.
Resenha no prestigioso The Guardian menciona parentesco com o austríaco Thomas Bernhard (1931 – 1989) e saúda o erotismo nada óbvio do relato, ao mesmo tempo que desvenda nele índices da vida brasileira. Poderia ter acrescentado que Um Copo de Cólera instaura uma urgência inesperada, um aqui-e-agora narrado em primeira pessoa, num conflito que, porém, se avizinha da tragédia grega e do horror bíblico. (Aliás, na linguagem das novelas de Nassar há eco bíblico por todo lado.)
Nisto reside talvez a grande novidade da indicação ao prêmio: é raro, raríssimo que alguma ficção feita por brasileiros alcance leitura geral, não acadêmica, sem ser uma das tantas variações sobre a miséria e/ou a violência e/ou o exotismo de país periférico, como ocorreu com Jorge Amado ou, para lembrar caso recente e paradigmático, Cidade de Deus.
Raduan Nassar, pouco lido entre nós – que contamos com escassos leitores adultos leigos, quer dizer, que leiam por vontade e não por necessidade escolar –, mas apreciado pelos mais exigentes leitores, ganha nova chance de encantar (aterrorizando), numa narrativa densa e capaz de mudar o leitor, como fazem as grandes obras de arte.