Um dos principais escritores gaúchos, Aldyr Garcia Schlee costuma ser identificado como autor de fronteira, que explora o imaginário pampiano e o próprio palavreado "brasiguaio" - ele nasceu em Jaguarão e viveu entre Río Branco, "do lado de lá da ponte", Pelotas e Capão do Leão.
Outra faceta de sua obra são os temas pop, ainda que circunscritos a certos limites geográficos: Schlee está trabalhando em um livro sobre Jorge Luis Borges (leia abaixo) e já escreveu sobre futebol (Contos de Futebol), Carlos Gardel (Os Limites do Impossível) e a visita de João Paulo II a Melo (O Dia em que o Papa Foi a Melo). Quando descobriu que o histórico presidente uruguaio José Fructuoso Rivera (1784 - 1854) passou meses em Jaguarão, não resistiu a romancear esta estada (Don Frutos).
- O que marca os lugares em que vivo me marca também - explica o autor. - Os fatos à minha volta estimulam minha imaginação e, depois, minha memória. Tenho um compromisso com minha memória. E ninguém importante passa por Jaguarão assim, no mais.
São lembranças da juventude que inspiraram seu novo livro, Fitas de Cinema, que será lançado nesta quarta-feira em Porto Alegre. Trata-se de uma compilação de narrativas curtas conectadas entre si - fórmula na qual Schlee é mestre. O tema não podia ser mais pop: os filmes que ele viu no Theatro Esperança, gerenciado por seu avô em sua cidade natal, e no Cine Río Branco, que ele frequentava aos domingos, na década de 1950, "para assistir a quatro ou cinco películas em sequência, emendando matinée, vermouth y noche".
Fitas de Cinema é dividido em cinco partes, que recriam cenas de cinco longas-metragens - a partir daquilo que Schlee imaginou e seguiu rememorando nos anos seguintes.
- Era algo que eu precisava compartilhar - afirma.
Dos cinco, apenas Um Lugar ao Sol (de George Stevens, 1951) está na lista dos cem melhores de todos os tempos segundo Schlee. Sim, existe essa lista. Existem, também, "oito ou nove caderninhos, hoje quase desmanchados pelo tempo", com anotações de todos os títulos assistidos, comentários e suas respectivas cotações. De certo modo, Schlee deixou as preferências de lado para se dedicar às cenas que mais o atiçaram "a ponto de serem refeitas na imaginação", às vezes, inclusive, incluindo-se na história.
Basicamente, recriar essas cenas é o que ele faz em Fitas de Cinema.
- Acredito piamente na verdade da tela. Entro nas imagens como se elas fossem reais. O cinéfilo precisa fazer isso, é uma das chaves da magia dos filmes. Recriar é consequência disso - diz o autor.
Sucede que o leitor vislumbra Burt Lancaster e Katharine Hep­burn em Lágrimas do Céu (de Joseph Anthony, 1956), mas está lendo, na verdade, algo que se passa num lugar em que não se vai ao armazém, e sim ao bolicho, e os cachorros não latem, mas acoam. A imagem é a de Os Brutos Também Amam (George Stevens, 1953), mas não se fala em inglês nem no português padronizado pela TV - em vez de "acenos e adeuses", os personagens fazem "acenos e adioses".
Schlee define Fitas de Cinema como um volume de contos que se aproxima mais do ensaio do que da novela - algo que fez no espetacular Os Limites do Impossível. O fundamental é que, de novo, dá à narrativa curta outra perspectiva. Algo que - um olhar em retrospectiva sobre toda a sua obra revela - parece ser uma de suas missões.
Os outros dois filmes reinventados são O Barco das Ilusões (George Sidney, 1951) e Seduzida e Abandonada (Pietro Germi, 1964).
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Borges no espelho - E o dicionário pampiano
Aos 80 anos (fará 81 em 22 de novembro), Aldyr Garcia Schlee não para. O escritor, que sofreu oito intervenções cirúrgicas desde 2012, quando constatou um tumor numa das pernas, locomove-se com alguma dificuldade. Mas está em uma fase muito produtiva. Prepara para 2016 seu Dicionário Pampiano, elaborado com base na obra de 20 autores brasileiros, argentinos e uruguaios. E começou a escrever o que define como "um projeto ambicioso": Contos com Espelhos, exercício formal de elaboração de narrativas curtas a partir da vida e da obra de Jorge Luis Borges (1899 - 1986).
- Tenho umas 30 ideias. Se metade virar conto, já é suficiente para esse livro - projeta o autor. - O primeiro (conto) está pronto. Fiz a partir de uma história secreta de Borges que descobri por meio de contatos familiares quando eu tinha menos de 10 anos. A lembrança me persegue há sete décadas, tenho compromisso com ela. Vou escrever, mesmo que seja algo pretensioso e muito desafiador.
Fitas de Cinema
De Aldyr Garcia Schlee
Contos, editora Ardotempo, 272 páginas, R$ 40.
Lançamento nesta quaerta-feira, às 18h, na Palavraria (Vasco da Gama, 165), em Porto Alegre. Na ocasião, além de conversar com o público, Schlee também lança a nova edição do livro de contos Linha Divisória, publicado originalmente em 1998.