A "pátria gaucha" de Solanas
Aplaudido de pé ao receber o Kikito de Cristal, Fernando Solanas foi econômico no discurso, sexta à noite, no Palácio dos Festivais. O mestre do cinema argentino se disse feliz de estar voltando à sua "pátria gaucha" e exaltou colegas brasileiros de sua geração.
- Sou do tempo de Zelito (Viana, homenageado na noite anterior com o Troféu Eduardo Abelin), Barreto (o produtor Luiz Carlos Barreto, também presente), Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszmann. Sempre tivemos a ideia de uma América Latina mais unida. Levei tão a sério esse intercâmbio que me casei com uma brasileira - brincou, citando Ângela Corrêa, que atuou em seu filme A Viagem (1992), quando iniciaram o relacionamento.
Antes, em coletiva com jornalistas, Solanas falou sobre sua atuação política - é senador da república Argentina atualmente - e explicou por que tem feito pouca ficção nos últimos anos, preferindo o documentário:
- Migrei definitivamente para o documentário ao mesmo tempo em que iniciei a vida política. Pelas suas características, o cinema não ficcional tem permitido construir retratos melhores do que é a Argentina hoje, na comparação com as ficções.
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A vez de Zelito
Na quinta-feira, enquanto Zelito Viana recebia a sua homenagem, Luiz Carlos Barreto se levantou e foi ao "gargarejo", à frente do palco, para filmar o amigo. Na sexta, foi a vez de Zelito retribuir: Barreto e sua mulher, Lucy, foram chamados a entregar o Kikito de Cristal a Fernando Solanas, cena filmada na íntegra pelo diretor e produtor que na noite anterior recebera o Troféu Eduardo Abelin. Todos saíram juntos do Palácio dos Festivais.
O filme da Saraí
O último curta a ser exibido no 43º Festival de Gramado, o gaúcho O Teto Sobre Nós, de Bruno Carboni, foi um dos melhores da mostra competitiva nacional. Hábil mistura de documentário com ficção, o filme retrata o clima de tensão na Ocupação Saraí, em Porto Alegre, quando a Justiça autoriza a desapropriação do prédio abandonado que hoje é habitado - precariamente - por famílias de sem-teto. Carboni, que é montador, revela-se bom diretor de cena ao posicionar atores profissionais em meio aos moradores da Saraí. A montagem precisa, o som climático de Tiago Bello e a fotografia soturna de Antonio Ternura são candidatos aos Kikitos - assim como a foto de Arno Schuh, do outro gaúcho em competição, O Corpo, de Lucas Cassales.
Híbridos
- A ideia nunca foi fazer um documentário - diz Bruno Carboni sobre O Teto Sobre Nós.
Montador dos longas Castanha (2014), de seu sócio Davi Pretto, e Morro do Céu (2011), de Gustavo Spolidoro, Carboni se diz afeito aos chamados filmes híbridos, meio ficção, meio não ficção.
- Fazer uma fábula com um personagem que flerta com o fantástico, mas conectando-a a uma realidade dura, foi o grande objetivo - revelou Carboni, no debate sobre o filme. - Depois de pensar nisso é que fomos à ocupação e decidimos filmar ali.
Duas vezes angústia
Diretor de Castanha e produtor de O Teto Sobre Nós, Davi Pretto fez um discurso contundente na apresentação do curta de Carboni.
- Os moradores da Ocupação Saraí vivem a angústia da desapropriação. Essa angústia também é vivenciada pelos cineastas gaúchos: este filme foi realizado graças a um edital do Iecine (Instituto Estadual de Cinema) para a produção de curtas que não teve uma nova edição. Estamos todos no aguardo do pagamento do edital de longas, lançado pelo governo gaúcho no ano passado e que ainda não teve contemplação na prática. Isso que ficamos 10 anos sem um edital para a produção de longas no Rio Grande do Sul.
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O discurso está em sintonia com o próprio filme: O Teto Sobre Nós é um filme sobre a angústia da espera pela desapropriação, com a violência que costuma ser empregada pelos policiais nesse tipo de situação. Com alguma esperança: há um personagem encarnado pelo músico Cosme Rodrigues que, descreve Carboni, "paira sobre o prédio ocupado, permanecendo ali, marcando presença, mesmo quando ele é esvaziado".
Terminou mal
O Festival de Gramado merecia um longa-metragem melhor para encerrar a mostra competitiva. Exibida na sexta-feira à noite, a comédia dramática Um Homem Só, da estreante Claudia Jouvin, é um filme de mercado, que quer o diálogo com o grande público, mas de trama bizarra e soluções questionáveis de direção conforme se desenvolve a história de um homem (Vladimir Brichta) que resolve ser clonado.
Foi um dos longas esquecíveis de Gramado 2015 - outros foram Introdução à Música do Sangue e O Outro Lado do Paraíso, embora este último, de André Ristum, sobre o crescimento de um menino em Brasília em pleno golpe de 1964, tenha muito mais capacidade de conversa com o grande público, algo evidenciado pelos aplausos ao final da sessão.
Os melhores, os longas brasileiros que passaram em Gramado e merecem especial atenção dos espectadores, são o hors-concours Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert, e os candidatos aos principais Kikitos Ausência, de Chico Teixeira, Ponto Zero, de José Pedro Goulart, e os irregulares - elogiados por uma parte da crítica, nem tanto por outra - O Último Cine Drive-In, de Iberê Carvalho, e O Fim e os Meios, de Murilo Salles.