Já contei por aqui que minha mãe, dona Léa, aos 95 anos, continua lendo, apesar de não conseguir mais distinguir os caracteres. Ela conta com a ajuda da Maria Luiza, que faz a leitura em voz alta. Também contei que estava pensando em dar O Vermelho e o Negro para a dupla, pois tinha uma ótima lembrança da obra de Stendhal, mesmo sabendo que o caráter dúbio de Julien Sorel provavelmente seria alvo de críticas violentas. Dito e feito. Achei uma edição em capa dura, com uma bela ilustração de Napoleão (o grande ídolo de Julien) na capa, e encaminhei o volume para a dona Léa. A leitura logo começou.
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Perguntei, alguns dias depois, o que a minha mãe estava achando. "Por enquanto, não aconteceu muita coisa. Tudo é descrito com muitos detalhes, o que é interessante, mas o tal Julien não parece estar com muita pressa para subir na vida." Considerei essa apreciação normal, pois com certeza o romance ainda não tinha decolado. O autor precisa de um tempo para construir cenários e personagens antes que a trama realmente emocione. Lembrei também das dezenas de parágrafos que Balzac utilizou para desenhar as fisionomias burguesas do interior da França antes de nos apresentar ao sr. Grandet e, muitas páginas depois, à sua pequena filha Eugénie.
Semana passada, visitei minha mãe e voltei a perguntar sobre O Vermelho e o Negro. "Vou te confessar, meu filho: eu estava sofrendo com aquela chatice, mas não queria abandonar o livro. Aí li tua última crônica, aquela que falava pra largar logo o que não estamos gostando. E larguei". Ela riu da minha cara de bobo e, talvez para me consolar, completou: "Mas a Maria Luiza estava curiosa pra saber como a história terminava, e eu disse pra ela levar o livro pra casa". Eu continuava sem palavras, e ela encerrou nossa conversa assim: "Ela me disse que o tal Julien acaba guilhotinado. Bem feito!". Pobre Julien! Foi substituído, sem dó nem piedade, pelos personagens de Os Catadores de Conchas, de Rosamunde Pilcher, que, segundo a dona Léa, são bem mais rápidos para alcançar seu destino. Moral da história, para o grande Stendhal e para todos os ficcionistas: não espere demais pra começar a história, porque a guilhotina da minha mãe continua bem afiada.
Coluna
Carlos Gerbase: pobre Julien!
O colunista escreve quinzenalmente no 2º Caderno
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