Imaginem uma parede branca. Restrinjam-na a ser agora a parede branca de um dos lados de um quarto. Acrescentem ao centro de sua extensão manchas alaranjadas, resquícios do atrito de uma bola de basquete. O carpete no chão abafa o som dos quiques, mas ainda ressoa agudo o eco do interior da câmara a cada arremesso. Vejam, por fim, a tabela erguida à altura de duas crianças, o quadrado preto da moldura externa, depois o quadrado preto interno, o aro de uma estranha cor ferruginosa.
Mais do que de histórias que me contaram, mais do que dessas partidas contra meu irmão em nosso quarto, o que me lembro da infância são desses detalhes convertidos em sensações físicas. E não de como nossos pais permitiam a insanidade do jogo. Coisas e não eventos, percepções nítidas nos sentidos, mais do que de histórias coerentes. Perceber isso me fez poeta.
Nos anos como escritor, mas especialmente como professor de escrita criativa, notei que a memória, além da função de arquivo, dá-nos duas grandes potências: sensação e narração. Todos as temos, mas a prevalecente nos fará mais líricos ou mais ficcionistas. Narradores guardarão memórias como histórias, experiências encapsuladas em eventos condensados no tempo e no espaço, responsáveis pelas noções de início, meio e fim, sem as quais nossas próprias vidas (amorfas) carecem de sentido. Poetas lembrarão dos detalhes, vivos nos sentidos em um lugar em que o tempo não age. Assim as ranhuras da antiga garrafa de guaraná Brahma, que despertam aqui a doçura mais doce que já teve um refrigerante, ou a dor vertical da mordida que deixava aquela que tinha gana de morder.
Ao articular essas experiências, elas serão novas para vocês porque antes minhas, mas também antigas a vocês porque despertam sensações atreladas a lembranças equivalentes em seus corpos.
Narradores e poetas. Que existem em vocês e em mim, como formas de resistir ao empobrecimento do mundo, adornando nossas próprias memórias nesses movimentos, fazendo com que aquilo que é irrepetível não se apague, feito a risada da minha sobrinha Alice aos cinco anos, disparada quando eu lhe dizia alguma bobagem boa, recuperada agora em toda sua maravilha, sonora e visual. Sensorial. Sentimental.