No Brasil de 1982, sob a ditadura militar, vivia-se entre o aceno de tempos menos sombrios lançado pela anistia, em 1979, e a censura, que só chegaria ao fim em 1988 com a nova Constituição. Encarando o proibido, o permitido e o tolerado, um grupo de artistas ergueu na zona sul carioca o Circo Voador, para ousar, provocar e desafiar.
Em cartaz a partir desta quinta-feira no CineBancários (General Câmara, 424), com sessões às 15h e às 19h, o documentário A Farra do Circo (2014), de Roberto Berliner e Pedro Bronz, presta um precioso tributo a esse mítico palco de desbunde hippie-anarco-tropicalista.
Berliner fazia parte da turma e exibe agora, pela primeira vez, imagens de seu arquivo pessoal, registradas em Super-8 e VHS entre os primeiros meses de 1982, com o Circo esticando sua lona no calçadão da praia do Arpoador, ao auge da agitação na base encravada em outubro daquele sob os Arcos da Lapa, onde segue em plena atividade.
O Circo Voador é cria do grupo teatral Asdrubal Trouxe o Trombone, integrado por nomes como Regina Casé, Patrícia Travassos, Luiz Fernando Guimarães, Evandro Mesquita e Perfeito Fortuna. Nasceu da busca por um espaço alternativo para apresentar as performances cênico-musicais deles e de outros artistas que protagonizavam uma efervescente e irreverente interação entre teatro, música, poesia e dança.
Fortuna assumiu o papel de porta-voz e animador do Circo, espelhado na figura icônica do animador Chacrinha. "Fazer o que a gente já sabe é redundância. A gente tem é que se atirar no vazio", dizia ele.
- Antes de fazer cinema, eu planejava ser ator e andava com a turma do Perfeito. Queria ter feito o filme na época, mas nunca rolou. Mantive a proposta de ser um registro do calor da hora, por isso, não fiz nenhum novo registro - diz Berliner, justificando não ter complementado seu material com depoimentos atuais. - Até fiz uma longa entrevista com o Perfeito, mas meio que já sabendo que não ia usar no filme. Foi mais para reavivar nossas memórias.
Nome pioneiro do pop rock nacional oitentista, a Blitz, liderada por Evandro Mesquita, ganhou vida própria a partir do braço musical do Asdrubal. O Circo Voador se tornou palco de memoráveis apresentações, como a que serve de fio narrativo para o documentário: o show de aniversário de um ano na Lapa, que reuniu, em outubro de 1983, Barão Vermelho, Caetano Veloso e Brilho da Cidade (grupo de Cláudio Zoli, que emplacou o hit Noite do Prazer).
O Circo foi palco de projeção nacional de bandas como Legião Urbana, Kid Abelha e as gaúchas Engenheiros do Hawaii, Nenhum de Nós e Defalla. Tornou-se o lugar caloroso para nomes consagrados e talentos emergentes. Em seus primeiros anos, o espaço se destacou pelo pulsante ecletismo da programação. Agregou públicos de diferentes classes sociais, idades, gostos. Fez uma ponte entre a Zona Sul e a periferia. Misturava universitários, intelectuais, filósofos de botequim e figuraças que faziam arte nas ruas.
Na rotina do Circo, o rocknroll de Celso Blues Boy se alternava com um roda de samba puxada por Clementina de Jesus, a noitada punk era seguida por um formoso baile da Orquestra Tabajara. Tinha Gilberto Gil um dia e Agnaldo Timóteo no outro. Chacal e Paulo Leminski faziam performances poéticas no palco depois ocupado por um balé experimental de Deborah Colker. Durante o dia, o espaço abrigava oficinas de teatro, cinema, videoarte e circo, horta coletiva e até mesmo uma creche.
A Farra do Circo segue até uma malfadada turnê promovida pelo Circo Voador em seu projeto de itinerância. Perfeito e sua turma levaram artistas como Alceu Valença e Paralamas ao México, durante a Copa do Mundo de 1986. O impasse com um patrocinador deixou todos na mão, sem hotel e praticamente sem grana na cidade de Guadalajara. A visão anárquica e utópica do Circo como um empreendimento que se sustentasse financeiramente - ter lucro não era a proposta - costumava esbarrar na visão mais conservadora de potenciais anunciantes.
Em suas tantas frases espirituosas, Perfeito diz: "A gente é um risco no papel em branco, não sabe o que vai acontecer no fim, é como a poesia. Por mais que tirem nosso tapete, a gente não cai, a gente voa".
Segundo Berliner, o episódio no México ganha destaque no documentário por simbolizar o início do fim do sonho coletivo. Demandas distintas e divergências gerenciais levariam os protagonistas do Circo a tomar caminhos próprios. Perfeito hoje administra a Fundição Progresso, referencial espaço cultural instalado também na Lapa.
O músico Humberto Gessinger fala da importância do Circo Voador em sua carreira
Toquei pela primeira vez no Circo Voador no dia 25 de outubro de 1986, em um show coletivo que comemorava o aniversário da lendária casa de shows. Engenheiros do Hawaii dava seus primeiros passos fora do Sul com um disco chamado Longe Demais das Capitais debaixo do braço e muitos sonhos na cabeça.
Uma lembrança prosaica da noite: Celso Blues Boys era a atração principal, mas pediu para tocar antes da gente pois queria assistir ao Grande Prêmio da Austrália de Fórmula 1 que, na madrugada brasileira, definiria um dramalhão mexicano que se arrastava há meses. Estrelado por Nelson Piquet e Nigel Mansell.
Desde sempre, a cena musical alterna ciclos de generosidade e caretice. O Circo Voador e os anos 1980 marcam, para mim, uma dessas fases em que público, artistas, casas de show, imprensa etc. estão mais generosos, menos preguiçosos. Eletricidade no ar.
Voltei a tocar no Circo Voador em 1994 e 1995. Em 2005, gravei ali um especial para a MTV e, em 2011, foi a vez de levar ao picadeiro outro espetáculo: o Pouca Vogal.
Piquet já parou de correr faz tempo (até o filho dele já abandonou a Fórmula 1!) e eu sigo por aí. Pois é Acho que meu lance é mais maratona do que 100 metros rasos.
Trailer de A Farra do Circo
Show do Barão Vermelho em outubro de 1983
Barão Vermelho e Caetano Veloso em 1983
Paralamas do Sucesso em 1983
Reportagem dos anos 1970 sobre o Asdrubal Trouxe o Trombone