por Daniel de Mendonça
pós-doutor em ideologia e análise de discurso pela Universidade de Essex, professor da Universidade Federal de Pelotas e coautor da apresentação de "A Razão Populista"
Leandro Fontoura
jornalista de ZH, mestre em Ciências Sociais e doutorando em Ciência Política pela UFRGS
No momento de maior inquietação na Venezuela desde a morte de Hugo Chávez - que comandou o país de 1999 a 2013 -, um livro publicado há pouco no Brasil ajuda a entender um fenômeno que se espalhou pela região nas últimas décadas: o populismo latino-americano de esquerda. Escrita pelo teórico argentino Ernesto Laclau, a obra A Razão Populista retira o populismo da marginalidade política e o coloca como modelo capaz de ampliar as bases democráticas de uma sociedade.
A proposta de Laclau é radicalmente contrária às visões mais difundidas do populismo. Nas mais "diplomáticas", ele é visto como uma conexão direta entre um líder carismático e as massas, enfraquecendo a democracia representativa. Outras são mais diretas e classificam esse tipo de governo como nacionalista, antiliberal, assistencialista, demagógico e irresponsável.
Laclau ressignifica a ideia de populismo, que passa a ser uma "forma de construção da política", sem um conteúdo ideológico específico. Ou seja, pode ser de direita ou de esquerda, abarcando os mais heterogêneos levantes políticos. Esse fenômeno ocorre, argumenta ele, sempre que o povo se reúne em torno de demandas não atendidas - que podem ser completamente diferentes e circunstanciais, mas que passam a ter uma conexão entre si por terem sido "abandonadas" pelo governo - e passa a confrontar o poder constituído. Cria-se uma ruptura no sistema, opondo o povo às instituições formais, onde se abrigam as elites e as forças conservadoras.
A chegada do populismo ao poder representa o ápice do antagonismo entre esses dois campos. Daí, o embate entre populismo e institucionalismo. No primeiro, o movimento é de ascensão das massas excluídas a partir de mudanças sociais e, no segundo, é de bloqueio das transformações a partir da manutenção das estruturas institucionais até então vigentes. Na visão de Laclau, a supremacia do populismo na América Latina tem sido positiva para o continente, pois, ao assegurar a participação da população nas decisões políticas, fortalece a democracia e impede que esta seja reduzida a um sistema administrativo tecnocrático influenciado por interesses econômicos.
Não se trata de uma opinião descartável. Nascido em 1935, em Buenos Aires, Laclau é um dos teóricos políticos internacionalmente mais influentes em atividade. Licenciado em História pela Universidade de Buenos Aires e radicado na Inglaterra desde a década de 1970, é hoje professor emérito da Universidade de Essex. Na instituição, onde fez seu doutorado, fundou e dirigiu o Programa de Ideologia e Análise de Discurso e o Centro de Estudos Teóricos em Humanidades e Ciências Sociais, que se tornaram referências internacionais na área.
O professor é também fundador e maior expoente da vertente denominada "teoria do discurso da Escola de Essex". Em colaboração com Chantal Mouffe, em 1985, publicou Hegemonia e Estratégia Socialista, livro considerado um marco da teoria política do final do século 20. A tese central da obra é a defesa da ideia de que as verdadeiras transformações político-sociais somente são possíveis a partir da articulação entre diferentes demandas, que, associadas, compõem um discurso. O corolário dessa articulação é o que os autores chamam de hegemonia, momento em que uma entre as demandas articuladas passa a desempenhar o papel de representação das demais na luta contra um ou mais inimigos comuns. A política, na teoria de Laclau, se dá pelo antagonismo entre identidades discursivas que disputam a construção do pensamento hegemônico em uma sociedade.
Em A Razão Populista, esses argumentos são retomados a partir do antagonismo entre o povo - uma identidade discursiva constituída por meio da articulação de diferentes demandas - e os poderosos. Por telefone, desde a Inglaterra, Laclau falou ao Cultura sobre a obra, os governos latino-americanos e a onda de protestos no Brasil. Leia entrevista abaixo.
Zero Hora - Por que o populismo é frequentemente visto como algo negativo?
Ernesto Laclau - Esta é uma visão difundida por setores conservadores. Não devemos levar isso a sério. O populismo não é ruim ou bom em si mesmo. É uma forma de construção da política, baseada na criação de uma divisão na sociedade por meio de demandas sociais. Isso ocorre quando as instituições não conseguem atender às demandas populares. A interpelação dos poderosos por aqueles da parte de baixo da pirâmide social é a base do populismo. O populismo significa uma ruptura com o sistema, por isso a divisão da sociedade em dois campos.
ZH - O populismo visa a romper com as instituições existentes em busca de mudanças sociais. Qual o limite dessas mudanças? Não há risco de retrocesso democrático?
Laclau - Não necessariamente. Em alguns casos, o populismo pode ser uma clara fonte de progresso social. Nessas situações, o populismo pode reunir os oprimidos, integrantes da base da pirâmide social, independentemente de suas ideologias. Veja que podemos classificar Benito Mussolini (líder fascista italiano) e Mao Tse-tung (comandante da revolução comunista chinesa) como populistas. Tudo depende de como a identidade do povo - apoiador do populismo - é construída.
ZH - Não são instituições sólidas que asseguram o desenvolvimento econômico e social?
Laclau - O problema é que as instituições podem ser muito conservadoras. Veja a situação brasileira na República Velha. Havia um Estado liberal, instituições liberais, mas não havia democracia. O coronelismo impedia o desenvolvimento democrático das massas.
ZH - Na Venezuela, a oposição acusa o governo de, por exemplo, não respeitar as instituições, mudar a Constituição...
Laclau - Sim, mas a Constituição foi alterada a partir do voto popular.
ZH - Mas a oposição acusa o governo de não respeitar as instituições e, em resposta, aposta na derrubada do governo, o que é um ataque as instituições. Ou seja, mexer nas instituições sem consensos não pode gerar um ciclo sem fim de instabilidade?
Laclau - A instabilidade pode ser gerada por diferentes razões. Uma das possibilidades é a existência de um regime autoritário incapaz de escutar as demandas populares. Ou seja, não há respeito ao jogo democrático. As experiências ditatoriais da América Latina são exemplos de alteração da ordem institucional que não foram baseadas em valores democráticos.
ZH - O senhor tem uma visão crítica sobre os governos baseados na tecnocracia e sobre a substituição da política pela administração. Mas, em um mundo complexo como o atual, os governos não dependem cada vez mais de técnicos e ferramentas tecnológicas justamente para suprir as demandas sociais?
Laclau - Ao pensarmos no espectro político, temos de pensar em dois extremos, que são impossíveis na realidade. De um lado, há o institucionalismo e, de outro, o populismo. No caso do populismo, há o apelo das massas e sua mobilização. No institucionalismo, há a canalização de demandas por meio de mecanismos individuais e não de massa. Se você exagerar no institucionalismo, vai terminar em uma tecnocracia, na substituição da política pela administração. É um resultado não democrático. No século 19, Saint-Simon (pensador francês) disse que o governo dos homens seria substituído pela administração das coisas. Ele estava expressando, do seu jeito, a crença na tecnocracia. Na América Latina, o Estado liberal foi criado na segunda metade do século 19, mas esse sistema não representou forças democráticas progressistas, como ocorreu na Europa. O Estado liberal na América Latina foi a forma como as oligarquias locais organizaram uma máquina clientelista. Os parlamentos eram um instrumento de poder dessas oligarquias. Assim, quando os movimentos de massa surgiram, no início do século 20, não começaram por meio dos canais institucionais liberais. Pelo contrário. Em muitos casos, ditaduras militaristas antiliberais foram os canais de expressão de demandas democráticas. Pense no processo ocorrido no Brasil, passando pelo Levante do Forte de Copacabana, pela Coluna Prestes, pela Revolução de 1930 e pelo Estado Novo. Tudo isso representou novas forças políticas que erguiam demandas democráticas, mas não por meio dos canais institucionais liberais clássicos. Com o Peronismo, na Argentina, também foi assim.
ZH - Por que o populismo na América Latina é de esquerda?
Laclau - Há uma explicação. C.B. Macpherson (teórico canadense) escreveu um artigo famoso no qual diz que, no início do século 19, na Europa, liberalismo e democracia eram ideologias com diferentes orientações. O liberalismo era uma forma de organização política aceitável. E a democracia era um termo pejorativo, como populismo é hoje. Democracia era identificada com o jacobinismo. Foi necessário um longo caminho, com revoluções, para haver uma combinação estável entre liberalismo e democracia. Hoje, falamos em liberalismo e democracia como se fossem a mesma coisa, mas não são. Na América Latina, essa lacuna entre liberalismo e democracia nunca foi completamente preenchida. Isso significa que houve uma dualidade na experiência democrática de massas. De um lado, há a tradição liberal democrática. Nesse caso, tens de pensar naqueles que tentaram, no século 19, democratizar, por dentro, o sistema liberal. No Brasil, pense no papel de Ruy Barbosa. Do outro lado, há a tradição popular e nacionalista (a esquerda), que é outra rota para democracia. Foi o caminho seguido pela América Latina no século 20. Agora, pela primeira vez, temos a combinação das duas tradições. Temos regimes nacionalistas e populares em países latinos que não se opõem às liberdades avocadas pelo Estado liberal.
ZH - O senhor não vê no proletariado a classe destinada a provocar mudanças sociais, como no marxismo clássico. Qual grupo hoje, na opinião do senhor, poderia assumir essa tarefa?
Laclau - Não creio que exista um grupo. Mudanças sociais não têm ocorrido por causa da classe trabalhadora, como previu o marxismo clássico. A ideia de um setor ser depositário das mudanças sociais está sendo radicalmente questionada. Atualmente, temos de pensar em termos de articulação de pluralidades, na articulação de objetivos de diferentes grupos, constituindo naquilo que Antonio Gramsci (teórico comunista italiano) chamou de vontade coletiva. Essa vontade coletiva substitui o papel das classes sociais na visão tradicional. Em Porto Alegre, vocês receberam o Fórum Social Mundial, que representa uma pluralidade de demandas de diversos grupos dispersos. E esses grupos estão tentando criar uma nova vontade por mudança.
ZH - No Brasil, as pessoas saíram às ruas em 2013, em grandes manifestações, cobrando melhores serviços públicos. Os protestos surpreenderam governo, oposição e analistas políticos, principalmente por conta do cenário nacional: nas últimas décadas, o Brasil obteve estabilidade econômica e redução da pobreza. Como o senhor viu essas manifestações?
Laclau - Para tentar entender este tipo de fenômeno, é preciso ser cuidadoso. Demandas surgem facilmente, de uma variedade de setores que têm queixas pontuais. Também pode existir um sentimento generalizado de infelicidade, por causa da situação global. É importante para a democracia a eclosão de uma variedade de demandas. Mas, se essas demandas não são traduzidas em um projeto de mudança da natureza do Estado, elas nunca se tornam políticas e podem se diluir também facilmente.
ZH - Ao mesmo tempo, há descrença e desconfiança em relação aos políticos no Brasil. Nas manifestações, as pessoas defendiam protestos "sem partidos". Isto é um sinal de que os canais institucionais não estão mais funcionando?
Laclau - Você está correto. Esse sentimento aparece na Europa, mas é um beco sem saída. O movimento dos indignados, na Espanha, não está levando a lugar nenhum. Grupos movidos por sentimentos de insatisfação, mas sem objetivos políticos, são rapidamente desintegrados. Na Grécia, o cenário é diferente. Lá, existe mobilização social, mas houve a constituição do Syriza (partido que reúne grupos da esquerda radical) que entrou na disputa pelo poder. Na Itália, os grillistas (movimento criado por Beppe Grillo, líder político surgido por fora do sistema tradicional italiano) têm enorme apoio popular, mas esse apoio não se traduziu em proposta política viável.
ZH - Como um país pode trazer essa nova energia dos protestos para a política institucional de forma a fazer a nação avançar?
Laclau - O único jeito de fazer política real a partir desses protestos é não minimizá-los. É preciso compor projetos políticos de longo prazo. Quando você tem objetivos políticos, pode começar a mudar as coisas.
ZH - Como avalia os governos do PT?
Laclau - É uma questão muito ampla. Tenho simpatia por Lula. Em termos de política externa, por exemplo, no governo Lula, a posição do Brasil foi muito importante. Celso Amorim foi um excelente ministro das Relações Exteriores. Ele deu à política externa latino-americana um novo perfil, quebrando a tradicional subordinação do Itamaraty aos EUA.
ZH - E o governo de Cristina Kirchner?
Laclau - Vejo o governo, em geral, positivamente. É possível fazer críticas pontuais, mas, em linhas gerais, Cristina e, antes dela, Néstor rumaram em uma direção progressista. A Argentina esteve praticamente quebrada, vinculada ao Fundo Monetário Internacional, e tinha uma grande dívida externa. Nos anos Kirchner, o governo tomou atitudes importantes, como a nacionalização de empresas (como a petrolífera YPF, filial da espanhola Repsol). E, no geral, o país está muito melhor do que estava em 2003.