
Manas (2024), que estreia nesta quinta-feira (15) nos cinemas de Porto Alegre, é um dos filmes brasileiros mais elogiados no Exterior nos últimos anos. O cenário e o tema contribuem para a recepção calorosa em festivais e junto aos críticos: a Amazônia e a violência contra as mulheres são pautas urgentes no mundo contemporâneo.
Positivamente, a diretora Marianna Brennand não adota um "olhar estrangeiro", evitando o exotismo espetacular, nem investe na exposição da brutalidade — seu caminho é o da sutileza, o das elipses e metáforas, o do simbolismo e o do não-dito.
Trata-se de uma ficção baseada em histórias reais de exploração sexual, pedofilia e incesto na Ilha de Marajó, no Pará. O elenco inclui Dira Paes, Rômulo Braga (que faz o pai de Ney Matogrosso em Homem com H) e a promissora Jamilli Correa, adolescente que foi descoberta em uma seleção na periferia de Belém.
Filme foi premiado no Festival de Veneza

A primeira exibição mundial de Manas aconteceu no Festival de Veneza do ano passado, onde Marianna Brennand ganhou a mostra paralela Giornate degli Autori. No Festival de Mannheim-Heidelberg, na Alemanha, ela mereceu o troféu de cineasta emergente. No Festival de Huelva, na Espanha, o mais antigo da Europa dedicado ao cinema ibero-americano, Manas levou o Colón de Plata (o equivalente a prêmio especial do júri) e foi eleito o melhor filme pelo público.
Neste mês de maio, Marianna vai receber o prêmio Women In Motion Emerging Talent, iniciativa do Festival de Cannes com a Kering, uma holding francesa especializada em artigos de luxo, que é dedicado a novos talentos do cinema. A brasileira foi selecionada pela diretora Amanda Nell Eu, da Malásia, vencedora em 2024. Cada premiada escolhe a próxima, que ganha uma bolsa de 50 mil euros (cerca de R$ 320 mil) para apoiar a criação de seu novo projeto de longa-metragem.
Walter Salles e Luc Dardenne elogiaram "Manas"

Manas tem padrinhos de peso. Atuaram como produtores associados Walter Salles, diretor de Ainda Estou Aqui (2024), ganhador do Oscar de melhor filme internacional, e os irmãos belgas Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne, que colecionam prêmios em Cannes graças a títulos como Rosetta (1999) e A Criança (2005), ambos laureados com a Palma de Ouro.
"A narrativa é ao mesmo tempo sensorial e emocional, os atores são cativantes, e a direção é inspirada, precisa e desprovida de sentimentalismo. Marianna nos oferece a possibilidade de mergulhar em um mundo que ainda não havíamos visto, trazendo luz aos seus demônios internos", elogiou Salles.
Luc Dardenne comentou: "É um filme que me emocionou profundamente. Sua abordagem da vida de uma jovem e sua família no Norte do Brasil revela a existência de uma comunidade, de uma sociedade onde a longa história de dominação masculina está violentamente inscrita nos corpos das mulheres".
O filme de Marianna tem parentesco com a obra dos Dardenne. Além do foco na adolescência, há um estilo naturalista nas atuações e na direção de fotografia assinada por Pierre de Kerchove, premiado por seu trabalho em Retrato de um Certo Oriente (2024) no mesmo Festival de Huelva que consagrou Manas. E a edição de Isabela Monteiro de Castro, montadora de Cidade Baixa (2005) e O Céu de Suely (2006), deixa as cenas respirarem. Essa abordagem próxima do documental é reforçada pela atenção com o som ambiente, que se faz presente antes mesmo de a primeira imagem aparece na tela, durante os créditos de abertura.
Conversa com Fafá de Belém inspirou Marianna Brennand

Manas é o primeiro filme ficcional de Marianna Brennand, filha do ex-senador piauiense e ex-prefeito de Teresina Heráclito Fortes e diretora dos documentários O Coco, a Roda, o Pneu e o Farol (2007) e Francisco Brennand (2012). Em entrevistas, ela disse que a ideia de Manas surgiu de uma conversa com a cantora paraense Fafá de Belém a respeito dos casos de exploração sexual de crianças nas balsas do Rio Tajapuru. Em 2014, a cineasta ganhou um edital de desenvolvimento de roteiro promovido pela Agência Nacional de Cinema (Ancine) e deu início às pesquisas e viagens para o trabalho.
No início, a intenção era fazer outra obra documental, mas Marianna viu-se obrigada a reformular seu projeto, como ela explicou em entrevistas:
— É um tema muito duro e complexo. Logo no princípio, deparei com uma questão ética muito séria. Era inaceitável colocar à frente da câmera crianças, adolescentes e mulheres para recontarem situações de abuso e trauma pelas quais haviam passado. Seria cometer mais uma violência contra elas, seria fazer com que revivessem esses abusos.
Na companhia de outros cinco roteiristas, Marianna criou a história de Marcielle, a Tielle, garota de 13 anos encarnada por Jamilli Correa, que não tinha qualquer experiência prévia com atuação.
— Eu sempre brinco que ela foi atriz em vidas passadas. A gente só destravou algo que já estava dentro dela — disse a diretora. — A Jamilli é uma força da natureza. Ela tem um silêncio preenchido que imprime na tela muitas nuances e uma inteligência cênica impressionante, qualidades raras.

Tielle vive na Ilha de Marajó junto ao pai, Marcílio (o brasiliense Rômulo Braga), à mãe, Danielle (a cearense Fátima Macedo), e a três irmãos. A adolescente cultua a imagem de sua irmã mais velha, Claudinha, que teria partido para bem longe após "arrumar um homem bom" nas balsas que passam pela região.
Movida tanto pelas típicas pulsões da adolescência quanto por um desejo de fugir de casa, a protagonista acaba embarcando em uma balsa. Tielle transita entre dois ambientes tóxicos e perigosos porque dominados por homens. Seu pai é um deles: Marianna Brennand deixa claro que Marcílio tem interesse sexual pela própria filha.
Tudo é evidente em Manas, mas nada é explícito. A diretora fala sobre pedofilia e incesto sem pesar a mão. Opta pelo antes e pelo depois, pela simbolização das ações e pela emoção dos personagens.
— Como mostrar o que ninguém quer ver e o que não deveria acontecer? — refletiu Marianna em uma entrevista, acrescentando que, se mostrasse uma agressão sexual, estaria "quase autorizando ela acontecer".
A violência não é apenas física, muito menos pontual. O naturalismo com o qual a diretora retrata o dia a dia daquela comunidade ribeirinha contribui para percebermos que o abuso sofrido pela população feminina está naturalizado. Graças a uma combinação de sociedade patriarcal, conservadorismo religioso, mercado de trabalho restrito e falta de educação sexual, já existe há muitas gerações. As mulheres adultas parecem resignadas, às vezes por medo de apanhar ou de ficar sem o sustento financeiro da família. As adolescentes já nem se chocam se uma aparece grávida — "Foi na balsa ou dentro de casa?", limitam-se a perguntar.

Talvez Tielle possa quebrar esse ciclo. Um fio de esperança surge na figura da policial Aretha, interpretada pela paraense Dira Paes e inspirada em personagens reais, como o delegado Rodrigo Amorim, que combate a exploração sexual infantil nas balsas do Tajapuru, e Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante, referência no enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes na Amazônia.
Mas talvez um distintivo não seja escudo suficiente. E a personificação do Estado em um único indivíduo — por mais empático e corajoso que seja — não deixa de ilustrar o seu descaso e a sua omissão.
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