Na segunda-feira passada, dia 14 de abril, Cristina Kirchner suspendeu por alguns momentos a queda de braço que vive com a oposição e com sindicatos para lamentar a morte de um dos mais respeitados teóricos políticos da atualidade.
- Laclau foi um filósofo polêmico, um pensador com três virtudes. A primeira foi pensar, algo não muito comum nestes dias. A segunda foi pensar com inteligência e, a última, pensar em desacordo com as potências culturais dos grandes centros de poder - afirmou a presidente, durante um evento na Casa Rosada.
Cristina se referia a Ernesto Laclau, que um dia antes, aos 78 anos, havia sofrido um infarto em Sevilha. Acompanhado da mulher, Chantal Mouffe, ele estava na Espanha para realizar uma conferência. A simpatia entre o pensador e o casal Cristina e Néstor Kirchner (1950 - 2010) era recíproca. Na sua última entrevista, concedida a ZH e publicada no sábado passado pelo Cultura, Laclau afirmou que o kirchnerismo deu ao país uma "direção progressista".
Laclau acompanhava as transformações argentinas de longe, da Inglaterra, onde morava desde o final da década de 1960. Professor emérito da Universidade de Essex, tornou-se mundialmente respeitado ao desenvolver uma corrente de pensamento batizada de teoria do discurso da Escola de Essex. Foi naquela universidade que ele fundou e dirigiu o Programa de Ideologia e Análise de Discurso.
Nascido em 1935, Laclau foi um intelectual criativo e audacioso. Sua obra pode ser dividida em duas fases. Na primeira, vinculada à tradição marxista, inspirada nos estudos de Antonio Gramsci e Louis Althusser, publicou Política e Ideologia na Teoria Marxista (Paz e Terra, 1979). Nessa obra, composta de ensaios sobre capitalismo, fascismo e populismo, já estava presente uma característica do autor: nunca assumir uma leitura ortodoxa de suas influências teóricas.
Foi a partir desta postura de independência intelectual que Laclau inaugurou a segunda e mais criativa fase de sua produção. Marcada pela publicação de Hegemony and Socialist Strategy (Verso, 1985), esta etapa representou um marco da teoria política do final do século 20. Nesse livro, escrito em parceria com sua mulher, Laclau e Chantal Mouffe operam a desconstrução das bases fundamentais do marxismo - neste caso, o que eles chamam de "essencialismo econômico em última instância"- sem, contudo, abandonarem algumas categorias centrais dessa tradição. O que os autores promovem é um encontro do marxismo com outras correntes, principalmente o pós-estruturalismo e a psicanálise lacaniana.
A segunda fase do pensamento de Laclau marcou sua convicção na natureza contingente da política. Contingência aqui significa dizer que as relações políticas são sempre instáveis e imprevisíveis. Afirmar isso, por um lado, representa um rompimento definitivo com o dogma marxista do operariado como a classe privilegiada para liderar transformações sociais importantes. Por outro lado, abre caminhos para transformações mais abrangentes e profundas.
É nesse ponto que os conceitos de articulação, antagonismo e hegemonia, alicerçados na natureza contingente da política, tornam-se peças teóricas fundamentais à compreensão da construção de identidades coletivas. Para Laclau, qualquer mudança social significativa necessita da articulação política entre vários segmentos sociais descontentes, setores que são normalmente marginalizados e que, politicamente organizados, constituem uma força importante para lutar por transformações reais.
Esta é a formação do "povo", a qual ocorre sempre antagonicamente ao poder instituído, tendo em vista este último mostrar-se incapaz de administrativamente solucionar as mais diversas demandas do dia a dia dos cidadãos. A representação das demandas populares, que pode ficar a cargo de um líder, um partido ou movimento social, é o que o autor chamou de hegemonia e, mais recentemente, populismo. A política, para ele, se dá pelo antagonismo entre identidades que disputam a construção do pensamento hegemônico em uma sociedade.
Nos últimos anos, Laclau havia deixado o confortável mundo das análises abstratas para intervir politicamente a partir de suas ideias. O livro A Razão Populista, recentemente lançado no Brasil, foi recebido como uma sustentação teórica dos projetos políticos populistas da América Latina, como o kirchnerismo e o chavismo. Ao reconhecer a contribuição de Laclau, Cristina Kirchner expressou uma perda que será sentida tanto no mundo acadêmico quanto na esfera política.