Em Uma Cidade Iconoclasta, Francisco Marshall critica o PLL 237/09, em tramitação na Câmara Municipal, que pretende regulamentar a ocupação de próprios municipais com obras de arte pública. Sua argumentação é baseada em três pressupostos: 1) nossos representantes públicos, assim como a maioria da população, são incapazes de compreender a "verdadeira arte" por falta de conhecimento; 2) a comunidade artística é o único "sujeito competente" para avaliar a arte pública; 3) a iniciativa da lei alinha-se às medidas totalitárias tomadas contra artistas em épocas passadas.
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Para mim, estes pressupostos são equivocados. O autor do projeto não se reconhece como especialista, mas como legislador. Reivindica seu papel de determinar, em nome da coletividade, como devem ser usados espaços municipais. O projeto defende que tais obras devem produzir "o bem-estar estético, cultural e ambiental da população", o que evoca as noções clássicas da dóxa segundo Platão: o legislador, assim como o cidadão, é dono de sua opinião, e ela pode ser justa, isto é, verdadeira. Para Platão, "no que se refere à ação, a opinião justa não é pior nem menos útil do que a ciência, e o homem que a possui vale o mesmo que o sapiente" (Mênon, 98c).
O segundo argumento é de autoridade: a ideia de "falta de cultura em História da Arte" sugere que somente pessoas do meio são competentes para dizer o que é ou não arte. É a defesa do discurso competente, negação da capacidade de entendimento das massas ou dos vereadores da beleza dos objetos artísticos. É, também, a afirmação da superioridade dos atores do campo das artes - artistas, curadores, históriadores da arte, etc. Quer dizer, a polêmica protagonizada em torno do PLL é apenas o pretexto para manter a arte na sua função de legitimação das diferenças sociais e reproduzir a divisão ideológica entre "elite culta" e "massa inculta". Como comenta Marilena Chaui: "a cultura é um direito do cidadão, [direito de] participar das decisões de políticas culturais". Não é o que o parlamento faz quando reconhece ao cidadão o direito de decidir quais monumentos públicos quer para sua cidade?
O terceiro argumento é de que a iniciativa legislativa é totalitária. Slavoj Zizek, em sua obra Alguém Disse Totalitarismo: Cinco Intervenções no (Mau) Uso de Uma Noção (Boitempo, 2013), mostrou que a noção de totalitarismo é ideológica: "Longe de ser um conceito teórico, é um tipo de tapa-buraco: em vez de possibilitar nosso pensamento, forçando-nos a adquirir uma nova visão sobre a realidade histórica que ela descreve, ela nos desobriga de pensar". Não é exatamente o que acontece? Não estamos deixando de refletir sobre o significado profundo do projeto, o de ser uma crítica da sociedade endereçada à arte contemporânea?
Esta crítica está baseada em dois pontos principais. O primeiro é a recusa de uma arte pública que aspira à violência. Ora, o projeto quer antecipar-se a um futuro da arte nada promissor, que se vê marcada pela repulsão, medo e terror. Em Discurso Sobre el Horror en la Arte (Casimiro, 2010), o filósofo e arquiteto Paul Virilio diz que estamos passando do "Horror Econômico"(conceito de Viviane Forrester) para o "Horror Estético", confusão produzida pela relação entre arte e genética, performance e tecnologia, com a emergência da body art, em obras como as de Stelarc. O projeto é a crítica do Legislativo ao perfil desta arte contemporânea: nunca foi a Supercuia o problema, mas sim o caminho aberto por ela. O que o projeto quer evitar é que obras mudem, no futuro, a natureza do espaço público da cidade - para pior. Veja-se os irmãos Chapman, que têm apresentado regularmente obras de corpos mutilados com grandes feridas abertas ou Damien Hirst e suas obras nas quais animais mortos ou em putrefação são tomados com
o arte. O projeto quer prevenir o futuro: um dia poderemos ter na capital obras violentas que tematizam a morte e o horror. A Câmara tem o direito de perguntar: é isso que os cidadãos desejam para os espaços públicos de sua cidade? Minha resposta é não.
A segunda base da crítica é a recusa de uma arte entregue à lógica do mercado. O debate atual retira os fatores econômicos envolvidos no tema para reduzir tudo a uma questão de interpretação da obra artística. Não é apenas isso, é mais complicado. O que o debate oculta é que tais obras públicas interessam aos artistas contemporâneos tomados de assalto pela publicidade. Ocupar os espaços públicos está se transformando em um grande negócio para os artistas, mais preocupados com a performance do que em representar coisas ou emoções humanas, "o lado espiritual da arte". É a desaparição da estética, diz Virilio, desaparição da arte pela adoção de um aspecto violento. E o pior: fortunas têm sido manipuladas no campo das artes, inclusive de fundos públicos. A escultura pública é desses fenômenos que empurra o valor das obras de um artista para cima, razão pela qual eles têm todo o interesse em ocupar esses espaços. Ter uma obra em um espaço público transforma a reputação de um artista, mas para isso, o "campo" (Bourdieu) precisa continuar a ter o poder de decidir o que e quem vai ocupar os espaços públicos. A arte contemporânea se transformou num horizonte de investimento de artistas e curadores e a arte pública ajuda a justificar os preços das suas demais obras, assegurando aos beneficiados por aquisições do Estado popularidade e prestígio.
O que os artistas recusam é o princípio das democracias modernas, no qual cada cidadão é considerado um participante com direito ao debate "fazendo valer a pertinência de suas ideias". Por isso o parlamento é também o lugar competente para as discussões estéticas, pois elas envolvem uma dimensão de poder, e os artistas e suas obras também devem se submeter às leis. Em vez de criticar, melhor seria se os artistas concentrassem esforços em propor emendas ao projeto de lei ou um substitutivo. É claro que o projeto precisa ser melhorado, como não? Mas a comunidade precisa acordar entre si, através de seus representantes, o que quer e qual o perfil das obras que quer ver ocupando o espaço público. Do jeito que está, o mais intolerável é que ninguém faça nada em relação à crescente eliminação de determinadas formas de arte pública em beneficio de outras. A arte pública deveria ser, como sugere Will Gompertz, "algo que alguém consegue realmente entender ou explicar enquanto se toma uma xícara de café".