Coloco a caneca com o café a sua frente. Ela a ignora.
- Morrer não é partir. Apenas trocar de casa.
Finjo que não ouço. Um arrepio de frio me perpassa o corpo. Levo a caneca aos lábios.
- Não se beija o morto. Ao morto se agradece pela vida. É uma cerca de pedra subitamente interrompida.
No escuro da noite bordado pela luz do lampião, quase não percebo seu rosto macilento. Qual a cor dos olhos? Sei que eles me seguem. Evito encontrá-los. O que desejará com aquela cantilena?
- Não se lamenta o morto. Do morto se registram as virtudes e os inúmeros vícios.
- Não se deve culpar o morto - retruco, afinal, bem ou mal, devo responder às suas provocações. - Ao morto se perdoa os silêncios. E o que ficou nas entrelinhas.
Há naqueles não olhos um sentimento de ausência que me angustia. Dom Luís, embaixo da mesa, rosna. Ela não se move. A dor no peito amainou, embora ainda a sinta.
- Não se julga o morto - continua. - Do morto se guarda o último registro. A carteira de identidade e o anel de pedras falsas.
Dom Luís coloca o focinho à mostra como se pressentisse algo. Envolvo a caneca com as mãos na tentativa de aquecê-las. Somos náufragos em um barco que talvez se estilhace contra os arrecifes.
- Não se purga o morto - emendo. - O morto é quadro na parede das lembranças. Saudade que acontece em repentes.
A noite avança. Sinto que o sono me abraça. Teimo e resisto. Ouço suas palavras me envolvendo como se fossem tentáculos de um polvo. O frio é cada vez mais intenso. Ou será impressão? Sirvo-me de mais café.
- Do morto não te despeças. O morto é tempo que não te abandona.
A cabeça pende. Luto para não fechar os olhos, mas o cansaço termina por me vencer. Fecho-os por instantes, a cabeça sobre a mesa. Ao reabri-los, não a encontro. Mas a sua caneca se encontra vazia.
Uma última chance? Um mês, um dia? E quem garante que ela não me espera além da porta?
Levanto-me.
- Dom Luís! Vamos!
Abro a porta e um sol esplêndido me queima o rosto.
A explosão da alegria é um presente raro que nem sempre valorizamos.